terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Coisa mental

Autómatos Universais são esculturas impressas em plástico através de uma
impressora 3d. As esculturas exploram a criação de espaço volumétrico através
de progressões de algoritmos de autómatos celulares. A. Sier

“Seeds rather than forests”


por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Na segunda metade de 1997 imaginei um mapa interactivo do meu país, geo-referenciado, ligando uma navegação virtual sobre o mapa orto-fotográfico do território às moradas que então cresciam já a uma velocidade exponencial na Internet. O projecto viria a ser realizado para a EXPO’98 e baptizado com o nome Portugal Digital. Consultei e reuni para o efeito várias instituições portuguesas: o Instituto Superior Técnico, a Universidade Nova, o Centro Nacional de Informação Geográfica e o Instituto Geográfico do Exército. Para compilar e computar o projecto contei com Joaquim Muchaxo, entre uma plêiade de engenheiros informáticos que concretizaram o projecto.

Para calcular e visualizar em tempo real todos os processos de chamada e compilação de dados foi necessário adquirir um super-computador da Silicon Graphics, o SGI Onyx2 Reality Engine, com 4GB dememória RAM, e um processador de 195MHz. O preço desta máquina, em 1998, rondou os 600 mil euros! O mesmo poder de realização não custa hoje, 13 anos passados, mais do que 3 mil euros, ou seja, 200x menos! Medindo esta revolução tecnológica de outro ângulo, por exemplo, o da população virtual da Internet, verificamos que existiam 147 milhões de utilizadores em 1998, enquanto hoje este número subiu para 1.966.514.816, ou seja, 13x mais.

>A revolução tecnológica em curso deu lugar, em pouco mais de uma década, a um tecido cognitivo e sensorial híbrido, digital-interactivo, meio humano, meio máquina, cujos graus de liberdade lhe conferem enorme elasticidade linguística e plástica e uma crescente, mesmo invasiva, ubiquidade. A partir de uma triangulação de satélites de comunicações esta nova pele sobre-humana cobre o planeta com uma película de meta-realidade inteiramente inesperada e transformadora. Curiosamente, em 1999, um ano depois da apresentação na EXPO ‘98 do protótipo incógnito do que em 2005 viria a emergir, fruto de outra aventura, como Google Maps, André Sier, então estudante do Ar.Co, apresentava o seu primeiro projecto de arte computacional, “0 0 255”, usando o Unreal, um jogo de tiro na primeira pessoa (FSP), desviando-se embora claramente da sua ideologia. Enquanto os jogos de computador e “video games” seguem modelos icónicos e narrativos oriundos do imaginário e da cultura popular urbana, derivando não raras vezes do vasto mundo de aventuras da banda desenhada, do cinema de animação e da literatura de ficção científica, a descarnagem típica dos mundos virtuais interactivos de André Sier, ainda que tirando partido máximo dos motores computacionais, algoritmos, bibliotecas e linguagens de programação disponíveis, apontam claramente para uma outra tradição cultural: a da estética essencialista e analítica de um dos mais importantes segmentos da arte moderna dos século XIX e XX: a tendência para a abstracção.

Ao contrário das fantásticas desconstruções realizadas pelos Jodi a partir de jogos como Wolfenstein 3D, Quake, Jet Set Willy e Max Payne2, André Sier faz uma abordagem, por assim dizer, mais construtivista. O seu distanciamento relativamente ao que poderíamos chamar entretenimento, cultura popular, arte comercial ou indústria criativa, não ocorre sob um regime de dissensão desta espécie de realidade alienada, que a ideologia “hacker” dos Jodi tão bem distorce e escandalosamente escancara, mas antes como construção de novos mundos possíveis usando as mesmas ferramentas genéticas que a indústria utiliza para fins tão distintos quanto a arte da guerra e a cultura popular agonística. Observando, como venho observando há anos, a obra de Sier, constato que a mesma é, em si mesma, um progressivo historial de sedimentação e expansão generativa, acumulando estratégias, algoritmos, possibilidades, desígnios, gramáticas, bibliotecas, actores, ambientes e narrativas — constituídas ou potenciais. As peças evoluem por séries, precisamente porque são mundos de possibilidades autónomas, que podem iterar e ganhar complexidade, profundidade, definição e cor, por processos automáticos, aleatórios, genéticos e interactivos — endógenos e/ou exógenos. O que torna tão fascinantes os mundos imersivos ordenados por André Sier é, por assim dizer, a íntima correlação existente entre a deriva intuitiva das suas construções oníricas e a “techné” puramente mental e lógica rigorosamente prosseguida por alguém que na circunstância do seu próprio processo criativo consciente não pode deixar de ser considerado um artesão, ou um técnico, comprometido com a necessidade de dominar uma disciplina de linguagem, para melhor lidar com essa matéria que invariavelmente resiste à modelação, à palavra, e ao gesto final que antecede o nascimento de uma obra de arte. No caso, a massa da criação são zeros e uns, ou mais exactamente, processos combinatórios binários baseados em conjuntos de 4-bits, 16-bits, 32-bits, 64- bits, 128-bits, etc., cuja activação depende de um “bang” — eco discreto de um “big bang” primordial [Mark Whittle: Big Bang Acoustics].


Não Newtoniana (8x) from Andre Sier on Vimeo. André Sier: continuum

A evolução genética dos produtos decorrentes das instruções cumpridas e das possibilidades algorítmicas depende à partida de um desenho estratégico, ou numa perspectiva deísta, de um demiurgo, ou seja, daquele que está entre Deus e a Coisa Realizada. A longa tendência analítica da arte moderna chegaria durante o século passado a dois momentos críticos aparentemente antitéticos, a partir dos quais, supôs-se então, a arte ocidental caminharia inexoravelmente para uma fase de decadência de índole revivalista e neo-académica (o que efectivamente ocorreu). Esses dois momentos ficaram conhecidos por minimalismo e conceptualismo. Na realidade, foram as duas faces de uma mesma moeda: a redução fenomenológica da arte enquanto objecto, ou coisa no espaço-tempo, e enquanto linguagem. Desta fenomenologia diletante nasceu, enfim, uma experiência cultural cosmopolita oscilando entre o misticismo lógico e a voz da retórica. E no entanto, as coisas tinham corrido bem até Carl Andre, Donald Judd, Dan Flavin, da banda minimalista, e até Sol Lewitt, Joseph Kosuth e Dan Graham, da banda conceptual. Tragicamente bem!

De algum modo, podemos hoje dizer que a tendência geral para abstracção que acelerou a partir do pós-impressinismo analítico (sobretudo de Monet e Seurat), do cubismo, do suprematismo, do neoplasticismo e da arte abstracta em geral, chegou ao fim durante as décadas de 1960-1970 com a emergência e queda do minimalismo e da arte conceptual, prisioneiros ambos de um reducionismo mais metafórico do que verdadeiramente intelectual. Deixaram, porém, uma herança que hoje autores como André Sier podem legitimamentere tomar invocando a acuidade filosófica e estética do património inestimável da arte europeia que o Renascimento indiscutivelmente encetou, e que o Racionalismo, o Positivismo e o Idealismo Alemão elevaram depois a patamares de complexidade e robustez metafísica insusceptíveis de regresso às narrativas religiosas que dominaram o sentimento e os procedimentos da arte durante centenas de milhar de anos.

A literatura, as artes em geral e a própria filosofia chegaram durante o século 20, simplificando, aos graus zeros dos respectivos paradigmas constitutivos e culturais. Desnudadas as formas até à abstracção mais radical — essa espécie de regresso à geometria e à lógica que dominou a evolução das vanguardas artísticas e intelectuais europeias e americanas, de Monet a Roland Barthes — restou então o tempo da anatomia dos processos generativos das várias linguagens, da psicanálise dos autores e da sociologia da recepção.

Em 1936 o matemático, lógico e criptólogo Alan Turing já havia publicado a descrição de uma “experiência mental” a que chamou “a(utomatic)-machine” e que acabaria por ser conhecida mais tarde pelo nome de Máquina de Turing. Uma “Universal Turing Machine” (UTM) é uma máquina que consegue simular qualquer outra máquina, e um“teste de Turing” é uma forma de avaliação da capacidade de uma máquina para exibir um comportamento inteligente.

Durante a segunda guerra mundial Turing foi recrutado por Wiston Churchill para ajudar os serviços secretos militares ingleses a decifrar as mensagens codificadas da marinha de guerra alemã, cuja encriptação estava a cargo de duas máquinas electromecânicas baseada em rotores, a Enigma e a Lorenz (esta última estritamente dedicada à encriptação das mensagens do alto comando militar alemão). Os submarinos alemães foram à época responsáveis pelo afundamento de milhares de navios, nomeadamente civis, que transportavam pessoas, víveres, equipamentos e diverso material (nomeadamente de guerra) entre o continente americano e a Europa em guerra. As máquinas de encriptação alemã, cuja origem próxima datam da primeira guerra mundial (1914-18), pareciam imbatíveis pelos criptologistas humanos aliados. Foi então que Alan Turing, integrado já na equipa de criptólogos de Bletchley Park, também conhecido por Station X, e as suas teorias sobre números computacionais e máquinas automáticas deixaram uma marca indelével nos procedimentos que levaram o Post Office Electronics Engineer Tommy Flowers a desenhar e construir finalmente a máquina capaz de emular a codificação operada pelos rotores da Lorenz e assim decifrar em 1944 as mensagens do alto comando militar alemão nas vésperas do desembarque aliado na Normandia, conhecido por Dia-D.

Colossus, Mark I e Mark II, foram assim as primeiras duas máquinas electrónicas de processamento digital de informação alguma vez construídas para efeitos práticos, e as pioneiras absolutas dos actuais computadores. Esta breve incursão histórica é importante para se compreender o salto epistemológico fundador daquilo a que com propriedade poderíamos chamar o início da era pós-moderna, isto é, o momento a partir do qual a compreensão e a manufactura humana dos mundos possíveis transitou, pelo menos parcialmente, do trabalho meramente humano, físico e intelectual, para o trabalho das máquinas inteligentes. Mais do que pintar florestas ou construir mundos, como disse Brian Eno, numa formulação particularmente elegante e poética, o criador dos tempos pós-modernos, espécie de monista agnóstico e pós-industrial, dedica-se a semear princípios generativos, dos quais espera a emergência de novas constelações harmónicas — “seeds rather than forests”.

Os autómatas celulares de John Conway, desenvolvidos por Bill Gosper e Stephen Wolfram, entre outros, os algoritmos genéticos de Karl Sims, os enxames de Craig Reynolds, são alguns dos paradigmas da nova cultura emergente, onde André Sier, e muitos outros criadores contemporâneos, ou melhor dito, pós-contemporâneos (na medida em que as suas criações não são “actuais”, mas potenciais, incorporando estados passados, presentes e potencialmente futuros), claramente se encontra e é, entre os mais jovens artistas cognitivos e computacionais portugueses, um dos seus mais sérios, originais e notáveis protagonistas.

Existe ainda um problema de aprendizagem por resolver no que toca à recepção dinâmica das obras generativas e interactivas que têm vindo a ser criadas fora da disciplina estrita da música e dos ambientes e instalações puramente dirigidas ao ouvido. A responsabilidade por este atraso cultural deve-se sobretudo à inércia conservadora do mundo museológico e galerístico da chamada “arte contemporânea”. Enquanto a cultura electrónica popular progrediu a uma velocidade exponencial, como a importância sociológica, económica e estratégica da indústria de jogos incontroversamente atesta, as artes generativas e cognitivas em geral persistem ainda encapsuladas numa espécie de limbo “pré-artístico”, como se fossem seres estranhos a quem não é ainda permitido entrar de pleno direito no mundo “adulto” da arte. Este atraso institucional vai acabar por ser superado, provavelmente depois de um grande “bang”, cuja ocorrência creio estar ao virar da esquina.

Quando menos esperarmos, as artes generativas e cognitivas entrarão pelos nossos neurónios dentro com a mesma aparente naturalidade, velocidade e irresistível impregnação de um algoritmo tão revolucionário quanto aquele que deu origem ao nascimento do Google. Os trabalhos preparatórios estão há já longa data em curso. E os mundos filosoficamente possíveis de André Sier fazem seguramente parte do enxame que produzirá a próxima grande transformação da τέχνη (téchne).

Deixo, por fim, neste breve escrito introdutório à exposição que André Sier apresenta no Museu de São Roque (Lisboa), algumas noções a ter em conta quando vemos, ouvimos, sentimos, percebemos e interagimos com qualquer das peças que fazem parte de uunniivveerrssee.net”: 


  1. O ambiente de percepção é multimodal: espaço, objecto, som, imagem, interacção, retroacção, fantasma, conexão, rede, partilha, suspensão, intervalo, continuação, potencial.
  2. “uunniivveerrssee.net” não é um mundo finito, mas uma cosmogonia de possibilidades, computacionalmente gerada sobre bases digitais com várias extensões (32-bits e 64-bits). Neste caso, as frases “fui ver a exposição do André”, ou “gostei das instalações do Sier”, são incompletas e descrevem apenas a memória de uma percepção muito incompleta e de duração mínima da realidade potencial inscrita nas obras de arte oferecidas, cuja apreensão exige, na realidade, o tempo aparentemente infinito dos jogos. 
  3. As criaturas impressas e retiradas do mundo digital de possibilidades inscritas ou desencadeadas pela interacção humano-máquina — um jogo, individual ou colectivo, aleatório ou construído, partilhado ou simplesmente cumulativo de possibilidades — são a prova perceptiva, sensorial e física de uma emergência real, bem mais para cá, portanto, do que os universos meramente ficcionais ou simplesmente virtuais da pré-história da arte generativa e cognitiva em geral.

Maio de 2011
Copyright © 2011 by António Cerveira Pinto

Portugal antecedeu o Google Maps

Foi com uma máquina destas que se calculou o Portugal Digital (1997-98), um conceito meu, desenvolvido com uma equipa de engenheiros informáticos da UNL, para a EXPO '98. As semelhanças deste projecto com o Google Maps, lançado em 2005, não deixam de ser, no mínimo, irónicas — ACP

Os pontos nos is
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Publico um artigo de António Câmara, que acabo de pescar, e o meu comentário, sobre uma obra que imaginei e dirigi, enquanto responsável pelos projectos do Pavilhão do Território (cuja direcção-geral fora então entregue a Leonel Moura por João Cravinho), para que a verdade não ande por aí travestida.

Artigo de opinião de António Câmara no Jornal Expresso, 28 de Julho de 2008.
O Portugal Digital, exibido na Expo-98, permitia aos visitantes voar sobre o território e consultar bases de dados geo-referenciadas. Foi precursor dos actuais Google Earth e Microsoft Virtual Earth. O sistema representava uma visão de futuro para a exploração de um país. As tecnologias subjacentes resultaram da investigação de equipas da Universidade Nova de Lisboa (UNL), Instituto Superior Técnico (IST) e do Centro Nacional de Informação Geográfica (CNIG), que liderava o projecto. A Imersiva, uma “spin-off” da UNL, foi, entretanto, criada para explorar a componente de realidade virtual. Em 1998, Portugal detinha um capital de conhecimento praticamente único na Europa e com um número limitado de concorrentes na América do Norte. As equipas portuguesas que trabalhavam na criação de mundos virtuais tinham ainda um apoio significativo da diáspora: o professor José Encarnação do Fraunhofer Institute na Alemanha, líder mundial em computação gráfica; e Ken Pimentel e Kevin Teixeira, pioneiros em empresas como a Sense8 e Intel nos EUA. Mas o Portugal Digital não foi continuado e as tentativas dos promotores do projecto, para o expandir para a escala europeia, não foram bem sucedidas. A Imersiva, adquirida pela Portugal Telecom, nunca teve a oportunidade de transformar a tecnologia num produto. Os custos de equipamento e a largura de banda eram inapropriados. Mas não houve uma visão, em Portugal e na União Europeia, semelhante à proclamada por Al Gore no seu documento ‘The Digital Earth’ de 1998 (http://www.isde5.org/al_gore_speech.htm ). Empresas como a Keyhole (adquirida pela Google) e GeoTango (comprada pela Microsoft) implementaram a visão de Gore. O Google Earth e o Microsoft Virtual Earth já têm mais de cento e cinquenta milhões de utilizadores. Passaram-se dez anos. A União Europeia continua sem perceber que a invenção vem de pequenos grupos e não de redes com dezenas de parceiros. Portugal está, no entanto, mais aberto à inovação. Mas, a diferença reside no You Tube. O Portugal Digital teria sido um estrondoso sucesso global se esse canal de difusão existisse em 98.
António Câmara

Comentário publicado em Lugar do Conhecimento
Já agora vale a pena anotar que a ideia original foi minha, e que fui eu que abordei as instituições que viriam a desenvolver comigo este projecto efectivamente pioneiro a nível mundial, mas que a burocracia, alguma sede de apropriação intelectual desonesta, e a euforia dot.com acabou por reduzir a zero. Seria bom que este artigo de António Câmara tivesse mencionado a ficha técnica completa deste projecto. Lembro finalmente que este projecto, como outro que igualmente saiu da minha cabeça para a Expo98 (um par de golfinhos virtuais interagindo com humanos num ambiente de realidade expandida que reproduzia o estuário do Sado), e que contou com a colaboração competente e amigável do INESC, poderia ter colocado Portugal em matéria de inovação, criatividade e indústria num lugar onde afinal não chegou. Esta oportunidade de colaboração entre tecnologia e arte foi deveras produtiva e original. Just for the record ;)

António Cerveira Pinto

Ligar e religar


Figuras comunitárias (2)

Plataformas colaborativas e redes informais
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Há um livro cuja leitura recomendo a toda a gente antes de conversar sobre o futuro mais provável das sociedades humanas. Chama-se The End of Work, e foi escrito pelo economista Jeremy Rifkin, consultor de vários governos, entre os quais se conta o de José Sócrates. No essencial, este livro diz-nos que há um afastamento crescente entre o crescimento populacional e o número de pessoas necessárias a produzir tudo aquilo que consumimos e usamos. Ou seja, que a falta de emprego e o desemprego não só se tornaram variáveis estruturais e permanentes das sociedades tecnológicas globalizadas, como tende a aumentar em todo o mundo (China, Índia e Brasil incluídos) com consequências sociais potencialmente catastróficas, se entretanto as mesmas sociedades não souberem redesenhar os seus modos de vida.

Um das respostas possíveis a esta tendência estrutural da sociedade global é a criação de um rendimento social universal, isto é, garantir alimentação, abrigo e mobilidade a toda e qualquer pessoa do planeta, independentemente da sua idade, sexo, grau de instrução, ocupação e rendimento.

Outra das alternativas sugeridas passa pela criação de um vasto sector de economia social, baseado em redes colaborativas, locais e glocais, onde seja possível a troca directa de tempo por bens e serviços sem que tal implique necessariamente uma qualquer relação de exploração, ou acumulação capitalista (lucro)

Na realidade, estão já em marcha há alguns anos experiências sociais que envolvem formatos mais ou menos mitigados das duas alternativas mencionadas. Os regimes de voluntariado, os programas de responsabilidade social crescentemente adoptados pelas grandes empresas industriais e sobretudo financeiras, ou a criação local de moedas complementares, bancos de horas, instituições sociais de micro-crédito, clubes de trocas, etc. Falta, porém, uma teoria unificadora desta economia adaptativa em formação, sobretudo falta uma teoria construtiva capaz de lançar as bases universais de uma economia solidária tecnologicamente avançada e competitiva relativamente aos modelos falidos do Capitalismo especulativo, insensível e, em última análise, auto-destrutivo.

Os economistas tradicionais levaram demasiado tempo a perceber que o Capitalismo, insaciável na sua busca de mais-valias, acabaria por levar as sociedades ocidentais à beira do precipício económico, financeiro e sobretudo social. Só depois da queda estrondosa do Lehman Brothers, a maioria deles começou finalmente a duvidar da solidez do sistema financeiro ocidental. Em Portugal, o reconhecimento da crise, do estado lamentável da banca portuguesa, e sobretudo do gravíssimos problema do nosso endividamento público e privado, foi criminosamente tardio. Boa parte dos portugueses acabaria por ser apanhada totalmente desprevenida.

A situação actual, vista da perspectiva cultural, que é a minha, implica uma mudança profunda dos modelos de criação, produção, consumo e usufruto culturais. Implica, desde logo, que na reordenação radical que se impõe nas prioridades orçamentais do Estado, o sector cultural e criativo, ganhe claramente um outro protagonismo. A percentagem do Orçamento de Estado afecto à Cultura deveria subir imediatamente a 0,5% do PIB e caminhar na próxima década até aos 1%, obtendo boa parte das verbas necessárias a partir de uma racionalidade exigente noutros domínios orçamentais. Mas um tal incremento radical de meios não seria para manter o actual estado de coisas nos domínios cultural e religioso. Muito pelo contrário, a condição de aceitação social de uma aposta nova e radical nos sectores subjectivos da sociedade é a refundação dos seus próprios pressupostos e objectivos. E é aqui que a definição e estruturação das plataformas colaborativas e das redes informais tecnologicamente assistidas viria a fazer toda a diferença.

Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto


NOTAS
  1. Texto-base da apresentação no ciclo À Volta da Mesa Talks, no Museu Temporário / Galeria Luís Serpa, 16 novembro 2010.
  2. Jogos de arte ancestrais, praticados em família ou em comunidades mais alargadas. Neste caso, ilustrando um estudo sobre a sua importância educativa.
    The members of American Indian communities still participate in the making of string figures. They enjoy sharing them and learning new ones and they react with great interest to the hypothesis that this entertaining activity which has so long been a part of their culture may be related to the cognitive processes associated with mathematical thought.

    THE IMPLICATION OF STRING FIGURES FOR AMERICAN INDIAN MATHEMATICS EDUCATION
    Charles G. Moore
    in Journal of American Indian Education
    Volume 28 Number 1Figur
    October 1988
  3. A fim de contextualizar esta reflexão no campo das minhas indagações na matéria, transcrevo a ficha pessoal da apresentação feita na Culturgest em 2009 sobre a emergência e futuro das indústrias culturais e criativas à luz da recente iniciativa voluntarista da União Europeia a este propósito.
Fim do trabalho? Ou fim da tecnologia? 
Tudo começou pela observação da importância do conhecimento científico na evolução da espécie humana, e o duplo impacto que essa evolução tem causado à humanidade e ao asteróide que habita.

Questões como: a tecnologia enquanto vítima da exaustão dos recursos energéticos; o fim do trabalho humano como consequência da evolução das máquinas; e a emergência de uma arte cognitiva, que os sistemas pedagógicos tardam em assimilar, formam o núcleo das minhas investigações desde meados da década de 1990.

Mais recentemente, motivado pelo impacto global das transformações em marcha, comecei a associar a ideia de uma arte cognitiva à necessidade de uma nova arte socialmente responsável. — maio, 2009.

Memória do efémero

©Foto: ACP — Cravinas, 2010


Pregar às universidades


por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO


I


O grande paradoxo das novas tecnologias é que o processo de abstracção sucessiva e incremental de que são portadoras tem um limite material bem definido, de que fazem parte vários recursos naturais e condições ambientais que se aproximam rapidamente da exaustão. Ou seja, se por um lado, grande parte da realidade exposta através dos média “benjaminianos” é pura ficção ideológica e instrumental, e portanto uma mistificação simbólica, ainda que construída e consumida como a “realidade mesma” e “presença”, por outro, começámos há algum tempo a perceber que do fim inevitável deste ciclo de metáforas pouco ou nada ficará para a História, pois esta também morrerá, e o seu possível renascimento terá forçosamente que partir do nada, i.e. de uma acumulação ininteligível de ruínas, entre as quais, as mais incompreensíveis serão, precisamente, as tecnológicas.


II


Estive na Madeira, mais precisamente no Funchal, para participar num debate sobre a memória —e em particular sobre a memória cultural, a memória das artes, a memória do sentido do belo e do belo sentido— tendo por pano de fundo as omnipresentes tecnologias digitais.


Entre as comunicações mais marcantes anotei a leitura de Nuno Crespo, crítico e professor de estética em Évora (uma tão elegante quanto tardia, e errada, retoma do formalismo estético Kantiano), e anotei a exposição do arquitecto Paulo David (sobre alguns trabalhos seus). Conseguimos escapar dos remoinhos locais e das quase inevitáveis auto-flagelações sociológicas. O dia passou a correr, e fiquei com a sensação de que poderia ter lá estado em Skype, poupando tempo e recursos, a mim e à comunidade.


Na realidade, a discussão para a qual fui desafiado pelo Hugo Olim, docente do Centro de Competência Artes e Humanidades, da Universidade da Madeira, foi tão só aflorada, ficando quase tudo por dizer e discutir. Precisava dum dia inteiro para expor em linha recta argumentos e factos em abundância, até impregnar a audiência de problemas, perplexidades, e perguntas à flor da língua. E teria precisado de mais um dia, ou dois, de 12 horas cada, para discutir com todos e cada um as implicações dos meus cenários catastróficos.


Estamos no fim de um tempo longo. O Ocidente esvai-se no horizonte de onde um Sol nascente outrora improvável e inaudito ganha forma, mas uma forma que não reconhecemos, que nem sequer, às vezes, conseguimos ver, ao contrário do que determina o equivocado apriorismo kantiano.


No fundo, eu nunca falo se não do que em cada momento ocupa o meu contínuo filosofar. E a questão da extinção tecnológica que precederá de forma abrupta e trágica a própria extinção de um grande ciclo histórico de civilização e barbárie humanas, é uma tema fascinante e grávido de consequências práticas sobre as quais é o tempo certo de pensar, sobretudo agora, que os modelos da educação e da certificação em massa parecem ter os dias contados. Eu contraponho, à educação burocrática de Bolonha, o regresso às escalas comunitárias dos saberes. Eu contraponho, à atomização dos saberes, dos certificados e das competências, a necessidade de comungarmos novas linguagens de síntese cognitiva, e estéticas partilháveis por todos. A atomização dos seres e dos fazeres foi a maior e mais sofisticada armadilha lançada pelo Capitalismo ao âmago das democracias. Os especialistas não passam hoje de peças isoladas e substituíveis da lógica cibernética da produtividade e da exploração. Só quando o desemprego destes acabar por se tornar dramaticamente presente, perceberemos plenamente o escândalo da manipulação e ilusão de que fomos vítimas.


Estamos atolados no mito da genialidade contemporânea. E o mais ridículo de tudo é que em vez de nos recordarmos das lições que o passado encerra, andamos entretidos a fabricar memórias do presente, e registos solipsistas para memória futura. Esta arrogante presunção da nossa essência “contemporânea” é uma espécie de veneno que tomamos sem saber que o é, e sem pensar nas consequências. O indivíduo de que estas sombras são manifesto, é uma praga. Temos que regressar à comunhão dos corpos e das almas, ou seja, temos que trabalhar para a criação de comunidades pós-contemporâneas, por contraposição ao ilusório progresso e presente perpétuo de que se tem feito a ideologia da contemporaneidade.


Precisamos de tempo para passear, conversar e meditar. Temos que reaprender o caminho paciente da clarificação das ideias, dos olhares e das sensações.


Uma proposta: transformar os museus e centros falidos da arte contemporânea, que são aos milhares, em mosteiros tecnológicos —não no sentido de acumulações insensatas de novidades tecnológicas, nem muito menos de palcos de exibicionismo científico, mas antes, como lugares da τέχνη (téchne), i.e. de recapitulação, conservação e co-evolução tecnológica, enquanto prática de transformação da matéria e do ser.


Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto



NOTA

Este texto serviu de base a uma comunicação ao grupo de conferências subordinado ao tema “Memória do Efémero”, realizadas na Universidade da Madeira, Funchal, a 6 de Novembro de 2010. Oradores: António Cerveira Pinto, Idalina Sardinha, Isabel Santa Clara, Nuno Crespo, Paulo David.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Realidade aumentada na arte


Claude Monet — Impréssion Soleil Levant, 1872

Depois da representação
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Um artigo jocoso —“L’exposition des impressionnistes”— escrito pelo pintor, gravador e dramaturgo Louis Leroy, para o jornal satírico Le Charivari, baptizou e consagrou de uma penada o mais importante movimento estético europeu do último quartel do século 19. A sucessão de incidentes que levara à exposição organizada em 1874 pela Société Anonyme des Peintres, Sculpteurs et Graveurs, no estúdio do fotógrafo Félix Nadar, tinha começado onze anos antes quando Edouard Manet viu o Salón de Paris de 1863 recusar o seu escandaloso Le déjeuner sur l’herbe. Esta censura académica levaria o imperador Napoleão III a decretar a realização de um “Salon des Refusés”, para que fosse o público a julgar do mérito das criações artísticas dos “recusados”. De facto, em 1864 Manet viria a expor o primeiro de uma série de quadros escandalosos para aquela época. Há três elementos nesta história que gostaria de explorar rapidamente, tendo em conta que escrevo a propósito de uma reunião de artistas e profissionais imersos em tecnologias de realismo virtual de origem computacional. Curiosamente, Manet declinou participar na que viria a ser consagrada primeira exposição de pintores impressionistas. Por sua vez, a virulenta crítica que Louis Leroy dirige contra as pinturas da exposição refere expressamente a falta de definição que as caracteriza:
“Impressão, estava certo dela. Também dizia a mim mesmo, já que estou impressionado, deve haver ali impressão — e que liberdade, que facilidade de ofício! Um desenho preliminar para um papel de parede tem mais definição que esta vista de mar.”

Finalmente, a exposição organizada por Pissarro, Monet, Sisley, Degas, Renoir, Cézanne, Guillaumin e Berthe Morisot (única mulher pintora pertencente a este grupo), teve lugar no estúdio de Nadar, um dos mais célebres e inventivos pioneiros da fotografia que então descolava da sua primeira fase experimental (Niépce, 1822, 1825, 1826; Niépce & Daguerre 1825-1829; Fox Talbot, 1834; Daguerre, 1839.)

Nicéphore Niépce, heliografia (1825) Wikipedia

Por estas alturas eram já frequentes os retratos de pose, as paisagens e vistas de cidade, bem como as imagens de objectos e de máquinas realizados de forma mecânica, isto é, por acção directa da luz natural sobre materiais foto-sensíveis. Estas superfícies emulsionadas quimicamente tinham e têm a propriedade de reter e fixar em imagem uma dada exposição aos fotões reflectidos pelos objectos iluminados. O que não reflecte a luz, porque a deixa passar, ou porque tem uma cor absorvente, é preto; e o que reflecte a luz em todo o seu espectro visível é branco, havendo entre estes dois extremos uma longa gama de cinzentos. Os contornos são, na realidade, transições bruscas de estado, forma, cor e luminosidade. A linha, de facto, não existe. Os grãos, sim — como bem viram então os pioneiros da fotografia ao perceber a física das partículas quimicamente emulsionadas, e depois sensibilizadas.

Alguns pintores impressionistas, de Monet e Pissarro, a Seurat, entenderam precisamente este facto extraordinariamente importante da percepção. Os pontos de cores primárias agregam-se em manchas cujas transições de cor e intensidade percebemos como contornos, volumes e linhas — i.e. como imagens construídas ao longo de um complexo, interactivo e ultra-rápido processo de impressão sensorial e de trabalho emotivo-cerebral.

Manet (1832-1883) declinou o convite dos pintores rebeldes mais jovens, como Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919), ou Cézanne (1839-1906). Porquê? Apenas por ser de outra geração? Mas Nadar (1820-1910), que acolheu os futuros “impressionistas” no seu estúdio de fotografia, tinha uma década mais do que Manet e era uma vintena de anos mas velho do que Monet! A explicação será certamente outra. A minha interpretação é esta: por uma conjuntura extraordinária, creio que os comportamentos de Manet, de Nadar, e dos artistas da Société Anonyme, traduzem os três movimentos fundadores da cultura moderna da segunda metade do século 19 e de todo o século 20.

Nadar — Sarah Bernhardt (era como aqui a vemos...)

Manet representa a provocação e a urbanidade do novo programa realista anunciado por Goya (1746-1828), Géricault (1791-1824) e Courbet (1819-1877). Nadar protagoniza a emergência surpreendente do realismo tecnológico que, apesar das inúmeras falsificações, manipulações e agora efeitos especiais, continua a expandir-se como uma espécie de especulação absolutamente verosímil da realidade — “ça a été!” (Barthes, 1980). Os Impressionistas, por fim, abriram as portas a uma interminável análise formal da prática artística, caminhando e ajudando os seus sucessores a mover-se em direcção à abstracção, aceitando mais tarde acolher as tradições iconoclastas oriundas do Protestantismo e até do Budismo Zen.

Curiosamente, estamos na presença de três tipologias distintas de realismo: o realismo crítico, o realismo tecnológico e o realismo analítico. Enquanto a primeira permite integrar numa narrativa essencialmente política as aquisições tecnológicas e estéticas dos processos de figuração, representação e especulação, e a segunda inova sem compromisso, numa espécie de crescendo noemático dos aparelhos de representação (the determinable x), finalmente a terceira instaurou na arte uma disciplina desconstrutiva que tem na Fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) a sua possível justificação filosófica e estímulo.

Se elegermos Avatar, o filme realizado pelo escritor e artista-inventor James Cameron, para ilustrar um dos exemplos mais recentes de realismo tecnológico caímos, porém, num paradoxo: — a medida extrema de realismo conseguido através de técnicas de filmagem digital estereoscópica (Reality Camera System 1) e de sistemas de realidade aumentada que permitem ver instantaneamente o resultado da computação gráfica de processos de captura dos movimentos reais da acção cinematográfica (recorrendo à “virtual camera” do realizador), serve afinal para produzir um universo narrativo de pura fantasia e propaganda.

Precisamos, pois, para afinar a nossa presunção teórica, de recorrer a duas novas causas do paradigma moderno e contemporâneo da manipulação dos processos de comunicação e de representação simbólica. A primeira chama-se ilustração, caricatura, comic, anime, Ukiyo-e. E a segunda, propaganda, relações públicas, sedução e jogos de linguagem.

Uma das artes importantes do realismo crítico dos séculos 18 e 19 é a ilustração, praticada sobretudo através das técnicas de gravura por autores como Hogarth (1697-1764), Goya (1746-1828), Daumier (1808-1879), John Tenniel (1820-1914) e Toulouse-Lautrec (1864-1901), entre outros. A explosão dos meios de reprodução mecânica da escrita e da imagem, de que a litografia (Alois Senefelder, 1796) e a fotogravura (Niépce, Daguerre, Fox Talbot) foram poderosos instrumentos, associada à verdadeira revolução dos sistemas de transporte então em curso, tornou possível o aparecimento de um fenómeno novo: a proliferação e popularização dos meios de comunicação e arte.

A emergência de uma sociedade urbana de massas pedia um novo paradigma de comunicação, novas formas de produção artística, e uma modificação radical da natureza da recepção estética. Foi isto que aconteceu, ainda que sob a forma de uma verdadeira síntese crescente entre mercadoria e prazer. A narrativa libertária da Revolução Francesa, associada ao pragmatismo optimista e comercial da Revolução Industrial, deslocaram o centro da comunicação e da figuração simbólicas, das catedrais, dos adros da igrejas, e dos salões imperiais, para a cidade da multitude, da velocidade e da luz. Um novo realismo Pop iria inevitavelmente surgir de tamanha agitação cultural.

Carl Jung (1875-1961), Sigmund Freud (1856-1939), e mais tarde o seu sobrinho Edward Bernays (1891-1995), são três de uma plêiade de pioneiros que elevaram o conhecimento do comportamento dos indivíduos, e sobretudo das massas, até alturas inimagináveis pelos feiticeiros que até à data guiavam as consciências de crentes e súbditos. Adam Curtis assinala no seu premiado documentário para a BBC, The Century of the Self (2002), a importância de Bernays, autor do hoje pouco conhecido livro Propaganda (1928), na fundação do actual e omnipresente sistema de Relações Públicas.
“If we understand the mechanism and motives of the group mind, is it not possible to control and regiment the masses according to our will without their knowing about it? The recent practice of propaganda has proved that it is possible, at least up to a certain point and within certain limits.” — (Edward L. Bernays, Propaganda, 1928).

“The engineering of consent is the very essence of the democratic process, the freedom to persuade and suggest” – (Edward L. Bernays, The Engineering of Consent, 1947).

Parece, pois, que há um realismo muito actual que não esteve propriamente presente no baptismo do Impressionismo! À falta de melhor termo, chamemos-lhe realismo mediático. E porquê realismo? E não, pura e simplesmente, propaganda e manipulação?



Se pensarmos um pouco na publicidade actual, ou pelo menos na mais criativa (de que Postman Returns, idealizado por Mischa Rozema, é um bom exemplo), que temos de comum? Eu diria que temos, em primeiro lugar, uma boa história, ou uma boa anedota, depois, imagens sedutoras, ritmo musical, e finalmente uma quase ordem, na forma de um convite tentador ou chantagem simpática. Mas o mais importante é que a comunicação e a forma sedutora aqui tenham um objectivo preciso: conduzir-nos à realidade! Ou pelo menos a uma parte efectiva e imediata da realidade que nos circunda.

No labirinto cada vez mais denso e complexo da cidade a publicidade é um vector de comunicação, de informação e de posicionamento social e cultural. Porque a obsolescência urbana e pós-industrial é grande, e a memória pós-moderna demasiado volátil, o realismo, a clareza, o ritmo e o humor —que é simultaneamente uma expressão de realismo crítico e uma mnemónica—, são cruciais para uma forma eficaz de comunicação comercial. O consumidor precisa de ajuda na torrente de objectos materiais e virtuais que afluem às suas possibilidades de escolha. É nesta dialéctica que a inteligência comunicacional se torna crítica, e precisa de um tipo de criatividade especial, léxica e disléxica ao mesmo tempo, onde a qualia (e já não a aura) manifeste a sua indispensável presença.

A propaganda comercial e noticiosa é, para efeito desta análise, uma e a mesma realidade, uma realidade mediática.

R. Crumb [in Wmagazine]

Se olharmos enfim para o realismo mundano que vai de William Hogarth (1697-1764) a Robert Crumb (1943-), passando pela estampa japonesa de Hokusai e pela grande influência que estas chamadas imagens do mundo flutuante (Ukiyo-e) tiveram na Europa do século 19, e continuaram a ter durante todo o século 20, quer na Europa, quer nos Estados Unidos, tendo influenciado decisivamente a emergência das histórias aos quadradinhos, das tiras ilustradas publicadas na imprensa, e as edições de autor e revistas de comic, e continuando hoje a influenciar movimentos de estética urbana tão fortes e globais como o anime e a manga, não poderemos deixar de registar aqui um movimento subterrâneo de fundo, poderoso, sem as preocupações educadas do realismo crítico propriamente dito, mas nem por isso menos perspicaz e contundente. Digamos que aquilo que distingue o realismo mundano do realismo crítico educado é o exacerbado sentido de humor, culto do escárnio e erotismo provocador do primeiro, por contraposição ao jogo de sombras palaciano da realismo crítico. Outra distinção importante deriva dos públicos que um e outro realismo convoca.
O público de Manet nunca foi nem é o mesmo que devorou e continua a devorar as fantasias pesadas de Crumb, embora partilhe certamente o gosto pelas estampas de Hokusai. A produção discreta para uma aristocracia de apreciadores de arte não se confunde com a produção em massa dirigida à multitude urbana. Este apontamento, orientado para a tentativa de isolar o cerne da imaginação digital electrónica actual, necessitaria de mais tempo e detalhe para evitar uma leitura demasiado à letra das ideias até agora expressas. Por exemplo, como explicar Walt Disney —ou Shrek, Hulk, T-1000, ou Avatar— à luz das diferentes encarnações do realismo descritas? Onde ficam nesta divagação os Teletubbies?



A imaginação digital electrónica actual encontra-se algures no ponto de contacto intermitente entre o realismo tecnológico, o realismo mediático e o realismo mundano. Os esqueletos, as couraças duras, e a cada vez mais complexa e híbrida massa cinzenta do mundo digital, constituem uma espécie de técne (τέχνη) mutante, cujas aplicações exigem cada vez mais dedicação e aprendizagem por parte dos humanos.

Do realismo inicial, cujo aperfeiçoamento permite já ao mundo digital fabricar ilusões perfeitas, caminha-se agora para uma espécie de realidade aumentada, ou artificialidade imanente, para cuja génese e desenvolvimento a intervenção do colectivo de deuses cognitivos, produtores, programadores e designers que protagoniza o processo criativo tenderá a pulverizar-se numa rede cada vez mais fina e cheia de nós e níveis de complexidade e graus diversificados de intervenção, de onde a nova vida artificial começará um dia destes a desenvolver-se. Entretanto, permanece outro paradoxo: quanto mais rápidos são os processadores, mais tempo e dedicação são exigidos a quem desencadeia os processos criativos. A finalidade e o desejo encontram-se sempre um passo adiante!

[Escrito em 3 de Abril de 2010; publicado em 4 de Junho de 2010 por Sines Digital]

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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Em breve...

Denis Hickel e António Cerveira Pinto em Elvas, congeminando uma eurocidade. ©Foto: JAP (ed. ACP), 2010.

O blogue CkS Artport, que publico com alguma irregularidade no Wordpress, tem sido muito atacado pelos spammers. Estou farto de limpar a sujidade que por lá deixam diariamente!

Para obviar este problema irei transferir o conteúdo do dito blogue para aqui.

Um pouco de paciência, é tudo aquilo que precisamos ;)

António Cerveira Pinto