quinta-feira, 6 de outubro de 2005

A casa expandida

Juarez, México - uma das cidades com maior taxa de criminalidade e de crescimento demográfico simultâneos (vista aérea Google)

A caminho de um novo Deus
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Continuamos a esperar da nossa casa, ou da casa dos nossos pais, que seja um abrigo seguro, onde possamos cumulativamente descansar, comer, cuidar (pelo menos parcialmente) da nossa higiene e aparência, confraternizar com a família e os amigos, fazer amor, acumular objectos, organizar informação, guardar memórias e também, nalguns casos, trabalhar. Estas são as funções persistentes de um lar em qualquer parte do mundo, do mais miserável ao mais sofisticado, provavelmente desde que a grácil criatura a que os investigadores chamaram Eva Mitocondrial apareceu à face do planeta há uns 150 mil anos. Não vão mudar muito no escasso tempo que medeia entre a fase pantagruélica do mundo desenvolvido e carbónico que nos tocou viver e o próximo período longo de dificuldades profundas que espera a espécie humana numa qualquer esquina do colapso energético, económico e social que se avizinha rapidamente. Tornada clara esta hipótese de trabalho, o que se segue não passa de uma breve reflexão sobre um intervalo infinitesimal da história humana: 50 a 100 anos no máximo!

Tomando boa nota da publicidade intrusiva que minuto a minuto proclama a inevitabilidade de um destino agarrado ao telemóvel e em geral ao mundo fascinante da computação inteligente e ubíqua, dizer-se-ia que, pelo menos nas próximas duas décadas, a arquitectura dos abrigos humanos, incluindo os abrigos de trabalho, os hospitais, as discotecas, as prisões e os cemitérios, tenderão a sofrer uma mutação genética no sentido de uma magnificação virtual. Quer dizer, podemos esperar que todas estas formas de abrigo (pelo menos nos países ditos evoluídos), na confluência bizarra entre o desenvolvimento exponencial das tecnologias e nanotecnologias cibernéticas (duras e moles), por um lado, e as crises resultantes do fim da energia barata e dessas duas matérias primas definidoras da era actual (o petróleo e o gás natural), possam tender para uma intensificação sem precedentes da sua nova dimensão informática (electrónica, digital, computacional, bio-genética). Nas cidades meio paralisadas pelos custos insuportáveis da energia, pelos conflitos sociais, pela falência irreversível dos actuais sistemas políticos e pela insegurança extrema (boa parte das cidades da América Latina são o paradigma desta tendência geral) imperará o tele-trabalho, a tele-economia, a tele-agricultura, a tele-medicina, o tele-convívio, o tele-prazer, o tele-policiamento e os tele-funerais. Apesar da distopia, não deixa de ser um desafio interessante para os arquitectos, desde que saibamos expandir, em muitas direcções, a própria noção de arquitectura.

O tempo da especulação imobiliária, tal como a conhecemos, acabou. É o fim da época horrível dos modelos suburbanos das sociedades automóveis. E é também o princípio do declínio da época pindérica dos condomínios burgueses de uma classe média à beira do suicídio. Depois disto, em menos de 20 anos, teremos o regresso aflito dos cidadãos digitais aos centros urbanos, estejam estes onde estiverem. Assistiremos também, muito provavelmente (antes de 2050), ao aumento exponencial da densidade pós-urbana em todos os lugares do planeta onde houver suficientes recursos acumulados. À volta destas megalopólis tecnológicas, dos sub/super mundos que tentarão sobreviver ao colapso das democracias industriais, crescerão cinturas verdes e zonas transgénicas de proximidade, com muitos quilómetros quadrados de superfície, rigorosamente vigiados pelas redes de agentes virtuais inteligentes (rAVI), entretanto elevadas à categoria de novo Deus ex machina.

O objectivo imediato deste novo mundo é sobreviver ao colapso provocado pela exaustão de recursos e profundas feridas ecológicas causadas pelo crescimento estúpido da espécie humana. Por um lado, se houver juízo, impor-se-à a paragem dos crescimentos exponenciais de população onde os houver, combinando o apoio económico a essas sociedades com exigências políticas absolutas. Por outro, redefinir-se-à radicalmente o actual modelo de valores, transformando as sociedades de consumo e de desperdício materiais em sociedades essencialmente espirituais, baseadas num novo sistema de produção de imateriais e num novo regime de trocas simbólicas. O segredo destas novas sociedades resume-se, por assim dizer, à produção (emergência) de um novo tecido social inteligente, repartido entre a termodinâmica dos corpos moleculares e a velocidade electrónica criativa das redes de inteligência e subjectividade digital.

Se este futuro for possível, então teremos que pensar nas arquitecturas como sistemas de pensamento e cálculo de estruturas de mobilidade molecular limitada e tele-realidade. Por um lado, a nova cidade terá que ser redesenhada à medida dos nossos pés, como um sistema de praças comunicantes e lugares únicos; por outro, a nova cidade terá que ser reconstruída sob o regime imaterial de um sistema de interfaces de contacto virtual em rede. Na realidade, o nosso futuro como espécie evolutiva depende inesperadamente (depois de um devastador século secular) da transformação espiritual profunda do nosso ser social. Depois de ultrapassarmos os medos atávicos, e sobretudo as resistências das economias instaladas, poderemos e deveremos esperar uma boa ajuda a esta causa por parte do uso criativo das nano-bio tecnologias.

Carcavelos, 06 de Outubro de 2005.

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