sábado, 28 de abril de 2018

O filósofo e a sua imagem

António Cerveira Pinto
O Filósofo e a sua Imagem
Convento São Francisco, Beja (1991)


Houve uma época em que o incómodo se manifestava principalmente durante o sono. Insónias que deixavam as noites em claro; sonhos dramaticamente hiperrealistas que clamavam pela sua natureza pós-onírica, chegando a simular outros sonhos para reforçar a evidência da sua autonomia existencial; acordares lentos povoados por intermináveis e inconclusivas encenações. Depois, deixou temporariamente de sonhar, e o incómodo prolongou-se numa espécie de indecisão universal que o atormentava e impelia para uma oscilação pendular entre o mais nirvânico realismo e um nominalismo gelado, alienado e terminal. Passava então os dias a fazer a sua assinatura, incapaz de decidir qual de entre as numerosas possibilidades, igualmente válidas e originais, mas que sempre acabavam por desgostá-lo, poderia, em suma, representar a sua identidade.

Era certamente incomodativo este estado de indecisão. Às vezes, considerava-o uma consequência da sua natural imaturidade. Mas à medida que os anos foram passando, tal justificação perdia capacidade persuasiva, instalando-se no seu lugar um pânico suave mas insistente, que de forma mais ou menos cíclica acabava por apoderar-se da sua consciência e sobretudo das suas noites.

Embora sem esforçar-se demasiado na organização dos dados que há muito coligia sobre a possibilidade do conhecimento, esperava pacientemente pela oportunidade de um dia tropeçar com a solução do enigma que envolvia a diferença entre sonho e realidade. O seu método consistia, no essencial, em pensar conjuntamente os problemas da ciência, da filosofia e da arte.

Achando-se uma manhã especialmente bem-humorado decidiu desportivamente que aquele dia haveria de ser, além do mais, rentável. Poucos minutos depois veio a inesperada e bizarra ideia de inventar uma máquina de diálogos para filósofos solitários!

A coisa não era uma novidade completa, pois nessa época os jogos de video iam já na terceira geração, possuindo uma razoável e muito interessante capacidade de interação. Apesar deste pequeno senão, havia naquela ideia algo de estimável, em particular porque se estava já muito perto da miniaturização dos computadores de quinta geração, também conhecidos, com uma piscadela de olhos no meio da designação, por máquinas inteligentes

O princípio básico do programa era o seguinte: responder como um espelho a todas as afirmações e interrogações enunciadas por um filósofo qualquer.

A princípio, imaginou um “espelho” que devolveria a “imagem” recebida, introduzindo-lhe apenas um operador de simetria, como acontece com os espelhos vulgares. Ou seja, cada frase, cada ideia, cada entoação estilística seria, por princípio, devolvida como uma repetição topologicamente transformada, como uma redundância algo original, como uma afirmação de identidade paradoxal. Toda a informação seria, assim, devolvida através dum processo em tudo parecido com aquele que organiza a nossa imagem refletida no espelho: uma imagem original sob vários ângulos, mas paradoxal na sua forma. Aquilo que vemos ao espelho quando o olhamos diretamente é a imagem que os outros fazem de nós e não a imagem que nós, logicamente, deveríamos esperar do nosso olhar em direção a uma superfície refletora. Só não estranhamos a imagem devolvida porque aprendemos a reconhecer-nos nela.

Depois, assim que este operador de simetria fosse aperfeiçoado e desenvolvida uma proporção interessante entre memória máquina, thesaurus e memória operacional, pensar-se-ia no enriquecimento progressivo da “máquina de fazer filosofia”. Seria necessário desenhar outros operadores, tais como operadores de inversão, reciprocidade, contraste, compensação, iteração, multiplicidade, etc. No limite, deveríamos poder dotar esta máquina de um sofisticado dispositivo de aprendizagem lógica.

A luz de verão entrava pelo escritório, depois do banho, da barba feita e de um pequeno almoço já evaporado no estômago e na memória. Sentou-se, como de costume, em frente ao processador de texto, esperando pela brisa ainda fresca daquela manhã. Começou a imaginar lentamente o primeiro diálogo entre um filósofo e a sua imagem, entre um filósofo e uma máquina.


Filósofo - O mundo manifesta-se na linguagem.

Imagem ou Máquina Interactiva - O mundo ri-se da linguagem!

Filósofo - O mundo, se existe, deverá manifestar-se de algum modo. A existência, significando em si mesma o contrário do nada, produz necessariamente uma ruptura nesse inominável que é o nada, à qual teremos que forçosamente dar um nome.

Porque não, manifestação? E se uma tal manifestação interrompe a nulidade indizível do que então passa a ser um espaço de existência, porque não afirmar haver algures uma forma capaz de lhe ser comparada sem, por outro lado, se confundir nem com o ser, nem com a existência desse espaço? Havendo tal forma, a que chamamos significado, não estaremos necessariamente em presença duma linguagem, ainda que embrionária?

Imagem ou Máquina Interactiva - A “manifestação do mundo”, como V. diz, é uma ilusão sua, da sua existência (ou lá o que é), dos seus grunhidos, da sua vaidade onanista, e decorre muito provavelmente da infeliz hipertrofia dos seus aminoácidos e proteínas. O mundo é tudo o que acontece independentemente de ser ou não um caso  filosófico, independentemente de haver ou não espaços dizíveis, independentemente de V. ter ou não posto alguma vez as suas unhas neste planeta. Por outro lado, a mais infinitesimal das “manifestações do mundo” será sempre um infindável enigma para a sua cabecinha e, claro está, um criptograma indecifrável, por mais fortes que sejam, na sua imaginação, as linguagens criadas pelos seres humanos, entre as quais me vejo, já se sabe, forçosamente incluída!

Pode-se chamar o que se quiser aos ruídos que saem do corpo humano, bem como aos gatafunhos com que os homens marcam caninamente os territórios sob sua dominação. Mas seria ingénuo esquecermo-nos do facto de os seres humanos apenas se manifestarem relativamente ao que está perto deles e os atormenta, quer dizer, quando e só quando entram numa crise de equilíbrio. O nada vem, deste modo, ter com eles sob o aspecto de uma coisa que lhes fixa o espaço de reação e de manobra.

À memória deste evento doloroso chamam depois uma manifestação ontológica, fazendo corresponder aos esgares efeminados com que procuram representar o que os transcende uma ilusão preguiçosamente construída a que chamam linguagem. Enfim, só porque desenvolveram um contador original para a sua memória, isolando um intervalo na memória global da espécie onde estão encerrados, a que chamam tempo (passado-presente-futuro), acham-se no direito de presumir que são mais imprevisíveis do que um bando de mosquitos, e menos destruidores do que uma gripe. Só porque desenvolveram alguns mecanismos sofisticados de retroação, julgam-se no direito de querer que o mundo se reveja na vossa cacofonia mental e audiovisual.

Como devem rir os deuses ao escutarem estes animais erectos e gráceis!

Filósofo - O mundo será muito provavelmente caótico. Mas nesse caos original e final precipitam-se, por vezes, agregados cristalinos, cuja natureza é, por assim dizer, ritmada, estruturada, e ordenada segundo uma pulsação cujas variações só são possíveis graças a um intervalo espacial a que chamamos duração de um universo, ainda que este universo, qualquer universo, seja momentâneo e perdido na desordem infinita que nos rodeia.

Assim, de duas uma: ou a realidade do espaço-tempo é um evento pueril excecionalmente improvável no caos hegemónico que é o mundo, tendo por esta via uma natureza algo risível e demoníaca, ou, pelo contrário, a realidade do espaço-tempo é o Deus que instaura a ordem num caos original que, pela sua acção, deixará progressivamente de o ser.

No primeiro caso, o pouco sentido do mundo resume-se ao sentido daquele instante imprevisto e, deste modo, haverá pelo menos uma linguagem capaz de o representar, ou seja, haverá pelo menos o sistema de coordenadas que distinguiu a coisa do nada: uma singularidade. No segundo caso, a ordem é uma consequência estatística do caos inicial, transportando no seu esteio um sistema de códigos genéticos, de que as nossas humanas linguagens são, por necessidade lógica, uma das suas mais recentes expressões. Não podemos, pois, perceber o mundo a não ser por intermédio dos seus rastos. Ora o que distingue um rasto, da realidade que lhe deu origem, é precisamente a sua natureza linguística.

Imagem ou Máquina Interactiva - Ora, ora! O que V. me está a dizer é que não pode conhecer o mundo, mas apenas a sua aura. De facto, V. acaba de reconhecer que o mundo é um mundo de ilusões, embora admitindo, porque é ingénuo, que há um mundo verdadeiro escondido atrás de cada linguagem. Assim, a Lua  é para si, em primeiro lugar, uma palavra; depois, um princípio lunar que se esconde atrás da sua manifestação fenoménica; finalmente, um conceito determinista logicamente irredutível. Quando, por fim, chegar a este ponto de certeza verificará que algo importante senão decisivo foi ficando pelo caminho. Refiro-me, naturalmente, à Lua. A poesia lunar acabará por ser, para si, uma poeira leve que a ciência afasta do mundo.

Pois, para mim, a Lua é simplesmente a Lua que surge como um disco iluminando a noite e o dia, depois de o vento afastar as nuvens da tempestade que caminha para outro lugar. A ilusão que se esconde atrás da ilusão é uma ilusão ainda maior…



N.B.— a versão original deste texto (agora retocada) foi publicada no catálogo Jorge Molder | António Cerveira Pinto, por ocasião da exposição com o mesmo nome, realizada na Galeria Municipal de Beja—Escudeiros, em 1991. Contém, no fim, a seguinte anotação: “Texto do livro Alguns Filósofos, em preparação.”