quinta-feira, 8 de julho de 2010

Cultura e Terceiro Sector

Um novo paradigma para as sociedades pós-contemporânea*
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

©Foto: ACP — Geração à Rasca, 12 março 2011

Li recentemente uma notícia sobre a vontade do antigo ministro da cultura, Manuel Maria Carrilho (MMC), de voltar às lides. O ar de Paris fez-lhe bem! Ao contrário dos detractores da sua passagem pela política, eu alinho com muitos funcionários públicos modestos que por esse país fora o saúdam como o único responsável governamental que em muitas décadas assumiu sem receio a vontade de envolver o Estado na protecção e estímulo da actividade cultural. Ao que parece está com vontade de regressar, começando desde já por erguer de novo a bandeira do 1% do orçamento de Estado para o sector cultural. Seja bem-vindo. Mas eu vou mais longe: são precisos 3%!

Para este ano [2010], o Ministério da Cultura contempla uma despesa de 212,6 milhões de euros (M€), para uma despesa global da administração central de 54.381,6 M€ — ou seja, menos de metade dos famigerados 1% recomendados por MMC (0,39%). Pois bem, eu proponho que sejam retirados ao conjunto dos demais ministérios, de forma proporcional, os 1.418,848 M€ que faltariam para o orçamento do ministério da cultura atingir em 2009 os 3% do orçamento da administração central que proponho para as artes em geral.

Porquê e para quê, perguntar-se-à. Respondo assim: para colocar a cultura onde ela terá que passar a estar nas sociedades pós-contemporâneas, fazendo o que nenhuma outra instância governamental está vocacionada e muito menos preparada para fazer, ou seja, responder de forma criativa às sociedades tecnológicas em formação, nas quais o “fim do trabalho” (Jeremy Rifkin) e a emergência do chamado “terceiro sector” (2) são evidências, que a não serem convenientemente tratadas provocarão uma sucessão de colapsos sociais precedidos por crises financeiras e económicas de dimensões idênticas ou ainda mais dramáticas e prolongadas do que a que desde Fevereiro de 2007 começou por afligir o sistema financeiro, a economia e a sociedade dos Estados Unidos, estendendo-se depois ao resto do planeta.

Os programas de “novas oportunidades” e suposta formação profissional não passam de medidas paliativas ilusórias que em nada modificarão a tendência para a destruição estrutural do emprego assalariado induzida pela lógica intrínseca da produção tecnologicamente assistida em todos os seus segmentos: desde a extracção das matérias primas, à respectiva transformação, distribuição, promoção e venda.

O mesmo sucede nas políticas de subsídio à crescente e irrecuperável massa de desempregados atirados para o desespero pelas tendências cada vez mais acentuadas para a automação e desmaterialização dos processos produtivos, de gestão e da própria interacção social.

Ao contrário do que muitos crêem, a deslocação do capital e do trabalho para os países emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China, etc.), em busca, num primeiro momento, da proximidade aos recursos naturais e aos baixos salários, tem um impacto meramente conjuntural na mudança dos termos de troca à escala global. Na China, a crise financeira e económica mundial irá provocar em 2009 o despedimento e migrações no interior do seu vasto território de mais de 20 milhões de pessoas (3). A ONU, por sua vez, prevê que o desemprego possa chegar aos 230 milhões de pessoas em 2010!
Ora os governos continuam a responder a esta emergência como se a mesma fosse episódica e passageira, em vez de sistémica e porventura irreversível. Os instrumentos postos à disposição, por exemplo, do nosso ministério do trabalho e da solidariedade social, são completamente inadequados à natureza da crise em curso. Gerir pensões e tomar algumas medidas avulsas são caminhos para responder a problemas de uma época que já não existe.

A resposta à crise sistémica em curso terá forçosamente que ser uma resposta cultural. Quer dizer, uma resposta que convoque o melhor das energias criativas da comunidade para, em primeiro lugar, perceber a verdadeira causa das coisas, e depois, colocar em marcha uma verdadeira coligação de vontades, conhecimentos e energias criativas capaz de atalhar estruturalmente os múltiplos colapsos do sistema, avançando simultaneamente com modelos experimentais de interacção e cooperação social que possam ajudar a encontrar o paradigma social de que as sociedades cognitivas e tecnológicas em formação precisam para continuarem a permanecer humanas e civilizadas. Uma sociedade de velhos e alguns jovens estéreis guiada por “robots” e nano-tecnologias ao serviço de uma qualquer decrépita e corrupta aristocracia atulhada de dívidas — ainda que tais dívidas pareçam riqueza acumulada — não é o que todos queremos, certamente.

Embora os sistemas educativos sejam um desastre na esmagadora maioria dos países, e estejam aliás enredados numa cornucópia perversa de reformas cuja principal finalidade já é reproduzir com os menores custos possíveis um descomunal exército de gente desempregada ou que jamais encontrará emprego estável, boa parte das mudanças que no futuro permitirão adaptar as sociedades humanas à radicalização da era tecnológica, muitíssimo mais distributiva do que a actual, passará por uma verdadeira revolução educativa. Só que esta revolução precisa de um campo experimental prévio, onde seja possível montar um acelerador de criatividade social. É aqui que eu vejo a nova importância das práticas culturais entendidas em sentido lato, i.e. abrangendo as ciências, as filosofias e as artes, naquilo que seria a re-fundação da veterana “techne”. Ora, por incrível que pareça, são as vanguardas artísticas, da reflexão filosófica e da investigação científica quem melhor pode confluir para esta tempestade mental, de onde sairão, esperemos que a tempo, visões inovadoras e possíveis para esse mundo por vir a que chamo pós-contemporâneo.

Mas para que tudo isto ganhe momento seria da máxima importância fazer perceber aos políticos a necessidade de aceitarem reduzir o seu grau de omnipotência decisória, cujos resultados têm sido manifestamente medíocres. Pedimos-lhes um pouco de humildade neste transe difícil da civilização!
Que faria eu, enfim, aos 3% do orçamento da administração central atribuídos à Cultura numa próxima legislatura? Pois bem, faria isto: o primeiro 1% iria para a manutenção e divulgação do património cultural, abrangendo o longo período que vai desde os testemunhos originários da espécie humana até ao fim do século 20; o segundo 1% iria para a criação de um grande acelerador de partículas criativas multi-disciplinar, poli-nuclear, desburocratizado, autónomo e responsável, tendo por finalidade estudar e propor à sociedade modelos experimentais de convivência e simbiose criativa pós-laboral (considerando que o trabalho assalariado tenderá a desaparecer); e o terceiro 1%, finalmente, iria para o desenvolvimento de programas de responsabilidade social activa, orientados para o estabelecimento de parcerias entre os sectores público, privado e comunitário.

Por menos que isto, não vamos lá.

Copyright © 2009 by António Cerveira Pinto


NOTAS
  1. [*] O título original deste texto é “Cultura e Terceiro Sector nas sociedades pós-contemporâneas”, foi escrito para a edição de Maio de 2009 da revista L+Arte, e actualizado em 30-05-2009.
  2. “Terceiro sector é uma terminologia sociológica que dá significado a todas as iniciativas privadas de utilidade pública com origem na sociedade civil. A palavra é uma tradução de Third Sector, um vocábulo muito utilizado nos Estados Unidos para definir as diversas organizações sem vínculos directos com o Primeiro sector (Público, o Estado) e o Segundo sector (Privado, o Mercado).

    Apesar de várias definições encontradas sobre o Terceiro Setor, existe uma definição que é amplamente utilizada como referência, inclusive por organizações multilaterais e governos. Proposta em 1992, por Salamon & Anheier, trata-se de uma definição “estrutural/operacional”, composta por cinco atributos estruturais ou operacionais que distinguem as organizações do Terceiro Sector de outros tipos de instituições sociais. São eles:
    • Formalmente constituídas: alguma forma de institucionalização, legal ou não, com um nível de formalização de regras e procedimentos, para assegurar a sua permanência por um período mínimo de tempo.
    • Estruturas básicas não governamentais, são privadas, ou seja, não são ligadas institucionalmente a governos.
    • Gestão própria: realizam sua própria gestão, não sendo controladas externamente.
    • Sem fins lucrativos: a geração de lucros ou excedentes financeiros deve ser reinvestida integralmente na organização. Estas entidades não podem distribuir dividendos de lucros aos seus dirigentes.
    • Trabalho voluntário: possuem em algum grau mão-de-obra voluntária, ou seja, não remunerada, ou o uso voluntário de equipamentos, como a computação voluntária.”
      — in Wikipedia <http://pt.wikipedia.org/wiki/Terceiro_setor>
3 — 20 Million Laid-off Migrant Workers May Send China’s Unemployment Rate to 10%. February 06, 2009 — in China Stakes.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Augmented reality in art

Claude Monet — Impréssion Soleil Levant, 1872


Beyond representation

by ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

A witty article – “L’exposition des impressionistes” – written by the painter, engraver and playwright Louis Leroy, for the satiric newspaper Le Charivari, named and consecrated at one go the most important aesthetic European movement of the last span of the nineteenth-century. The succession of incidents that led to the exhibition organised in 1874 by the Société Anonyme des Peintres, Sculpteurs et Graveurs, at the photographer Félix Nadar’s study, had begun eleven years before, when Edouard Manet saw the Salon de Paris of 1863 refuse his scandalous “Le déjeuner sur l’herbe.” This censorship by the French academy would lead the Emperor Napoleon III to decree the carrying out of a Salon des Refusés, to let the public judge the merit of the artistic creations of the so-called “refused” (works). By 1864 Manet would exhibit the first of a series of scandalous pictures for that epoch.

There are three elements in this story that I would like to explain short, as I am writing regarding a reunion of artists and professionals immersed in technologies of virtual realism of computational origin.


Curiously Manet refused to participate in the show that would be considered the first exposition of impressionist painters. On the other hand the tremendous criticism that Louis Leroy addresses against the paintings of the exposition mentions openly their lack of definition:

“Impression, I was sure of it. I also told myself, since I am impressed there must be there any impression – and what a liberty (freedom), what an easiness in this craft! A preliminary drawing for a wall paper has more definition than this sight of the sea.” (1)

Finally, the exhibition organised by Pissarro, Monet, Sisley, Degas, Renoir, Cézanne, Guillaumin and Berthe Morisot (the only woman painter belonging to this group), took place at Nadar’s studio, one of the most famous and inventive pioneers of photography that by then came off from his first experimental phase (Niépce, 1822, 1825, 1826; Niépce & Daguerre 1825-1829; Fox Talbot, 1834; Daguerre, 1839).


Nicéphore Niépce, heliografia (1825) Wikipedia

By then time exposure portraits, landscapes and city sights were already frequent, as well as object and machine images made in a mechanic way, i.e. through the direct action of day light over photosensitive materials. These surfaces chemically emulsified had and have the quality of retaining and fixing in image a certain exposition to the photons reflected by the illuminated objects. That that doesn’t reflect the light, because it lets it pass, or because it has an absorbent colour, is black, and that, that reflects the light in all its visible spectrum, is white. Between these two extremes there is a long range of grey. The outlines (contours) are abrupt transitions of state, shape, colour and luminosity. The line doesn’t exist. The grains do, like the pioneers of photography saw, when they understood the physics of the chemically emulsified and then sensitised particles.

Some impressionist painters, from Monet and Pissarro to Seurat, exactly understood this extraordinary important fact of perception. The points of primary colours congregate in spots, the colour and intensity transitions of which are understood as contours, volumes and lines – i.e. as images built along a complex, an interactive and ultra-rapid process of sensorial impression and of emotive and cerebral work.


Manet (1832-1883) refused the invitation from the younger rebel painters like Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919), or Cézanne (1839-1906). Why? Only because they belonged to another generation? Nadar (1820-1910), who received the future “impressionists” at his photography study, was a decade older than Manet and a score older than Monet! So there must be another explanation.

This is my interpretation: owing to an extraordinary conjuncture, I think the behaviours of Manet, Nadar and of the artists of the Société Anonyme express the three founder movements of the modern culture of the second half of the nineteenth-century and of all the twentieth-century.


Nadar — Sarah Bernhardt (era como aqui a vemos...)

Manet represents the provocation and the urbanity of the new realistic programme announced by Goya (1746-1828), Géricault (1791-1824) and Courbet (1819-1877). Nadar is the leading figure of the surprising emergency of the technological realism, which, in spite of the innumerable falsifications, manipulations, and now special effects, goes on expanding like a sort of an absolutely facsimile speculation of reality – “ça a été” (Barthes, 1980). The Impressionists at last opened the door to an interminable formal analysis of the artistic practice, working and helping their successors work towards abstraction and later on accepting to welcome the iconoclastic traditions, originated in the Protestantism and even in the Zen Buddhism.


Curiously we are in the presence of three distinct typologies of realism: the critical realism, the technological realism and the analytic realism. While the first permits the integration of the technological and aesthetic acquisitions of the processes of figuration, representation and speculation in an essentially political narrative, and the second innovates without any compromise in a sort of noematic crescendo of the representation apparatus (the determinable X — that identity through time called upon by Husserl), the third, finally, sets up a “destructive” discipline in the art.


However, if we elect “Avatar”, the film produced by the writer and inventor artist James Cameron, to illustrate one of the latest examples of the technological realism, we fall into a paradox: the extreme measure of realism obtained through stereoscopic digital film techniques (Reality Camera System 1) and augmented reality systems, which instantly allow us to see the result of the graphic computation of processes that capture the real movements of cinematographic action (using the producer’s “virtual camera”), is after all good for creating a narrative universe of pure fantasy and propaganda.

To adjust our theoretic presumption, we need to turn to two new causes of the modern and contemporary paradigm of the manipulation of the communication and symbolic representation processes. The former is called illustration, caricature, comic, anime, Ukiyo-e, and the latter, propaganda, public relations, seduction and language games.


One of the important arts of the critical realism of the eighteenth and nineteenth centuries is illustration, above all the one practised through engraving techniques by Hogarth (1697-1764), Goya (1746-1828), Daumier (1808-1879), John Tenniel (1820-1914) and Toulouse-Lautrec (1864-1901), among others.


The explosion of the means of mechanical reproduction of writing and of image, of which lithography (Alois Senefelder, 1796) and photogravure (Niépce, Daguerre, Fox Talbot) were powerful instruments, associated to the true revolution of the transport systems, in operation by then, made possible the appearing of a new phenomenon: the proliferation and popularisation of the means of communication and art. The emerging of an urban mass-society aimed at a new paradigm of communication, new artistic production ways and a radical change of the nature of aesthetic reception. This was what happened, although under the form of a true growing synthesis between merchandise and pleasure.


The libertarian narrative of the French Revolution, associated with the optimistic and commercial pragmatism of the Industrial Revolution displaced the centre of the symbolic communication and figuration, of the cathedrals, of the churchyards, of the imperial saloons, to the city of speed, multitude and light. A new Pop realism would no doubt appear from such a cultural agitation.

Carl Jung (1875-1961), Sigmund Freud (1856-1939) and later his nephew Edward Bernays (1891-1995) are three among a brilliant group of pioneers, who raised the knowledge of the person’s behaviour, and above all the mass behaviour to unimaginable heights by the hand of wizards, who until that time guided the consciences of the faithful and of the subjects. Adam Curtis, in his prized documentary film of 2002 for BBC, “The Century of the Self” emphasises the importance of Bernays (the author of Propaganda, a book that is not much known nowadays), in the creation of the present and omnipresent system of Public Relations.

“If we understand the mechanism and motives of the group mind, is it not possible to control and regiment the masses according to our will without their knowing about it? The recent practice of propaganda has proved that it is possible, at least up to a certain point and within certain limits.” – (Edward L. Bernays, Propaganda, 1928).

“The engineering of consent is the very essence of the democratic process, the freedom to persuade and suggest.” – (Edward L. Bernays, The Engineering of Consent, 1947).
It seems so, that there is a very present realism, which didn’t exist when Impressionism appeared. For want of a better expression, let’s call it media realism. Why realism? Why not propaganda and manipulation?


If we think a little over the present publicity, at least the most creative (which “Postman Returns”, by PostPanic, is a good example), what do we have in common?

I would say, first we have a good story or a good anecdote, then seductive images, musical rhythm and at last a quasi-order in the shape of a tempting invitation or kind blackmail. The most important thing though is that the communication and the seductive shape have a precise objective here: to lead us to reality, or at least to an effective and immediate part of the surrounding reality. In the thicker and thicker and more complex labyrinth of the city, publicity is a vector of communication, information, social and cultural status. Because the urban and post-industrial obsolescence is enormous and the post-modern memory too volatile, realism, clearness, rhythm and humour – which is simultaneously an expression of critical realism and mnemonics – are crucial for an efficient way of commercial communication. The consumer needs help in the stream of material and virtual objects which flow into his choice possibilities. It is in this dialectics that the communicational intelligence becomes critical and needs a type of special creativity, lexical and dyslexical at the same time, where the qualia (and no more the aura) appears as indispensable. The commercial and informative propaganda is for the effect of this analysis the same reality, the media reality.


R. Crumb [in Wmagazine]

If we finally consider the worldly realism, that goes from William Hogarth (1697-1764) to Robert Crumb (1943-), and also through Hokusai’s Japanese pictures and the great influence these “images from the floating world” (Ukiyo-e) had in the nineteenthcentury Europe and went on having during all the twentieth-century, not only in Europe, but also in the United States of America, influencing decisively the emerging of the comic strips, of illustration bands published in the press, and the author’s editions and comics magazines, and are still continuing to influence such strong and global urban aesthetic movements like anime and manga, we can’t help registering here an important and powerful underground movement, without the educated preoccupations of the critical realism, properly so called, but nonetheless less perspicacious and contusing. In other words: that that distinguishes the worldly realism from the educated critical realism is the exaggerated sense of humour, the worship of mockery and provoking eroticism in opposition to the palatial game of shadows of the critical realism. Another important distinction derives from the audiences that each of these two realisms convenes. Manet’s public has never been the same that has been devouring Crumb’s heavy fantasies, although it certainly shares the taste for Hokusai’s pictures. The discreet production for an aristocracy of art appreciators is not to be mixed up with the mass production addressed to the urban crowds.

This short text, meant to isolate the core of the present electronic digital imagination, would need some more time and detail to avoid literal reading of the ideas expressed here. For example, how to explain Walt Disney – or Shrek, Hulk, T-1000, or Avatar – according to the different incarnations of realism that have been described? Where do the Teletubbies stay in this divagation?



The present electronic digital imagination lives somewhere at the intermittent contact point between technological realism, media realism and worldly realism. The skeletons, the hard cuirasses and the increasingly complex and hybrid grey matter of the digital world, form a kind of mutant techné, the applications of which demand increasing dedication and learning by the human race. From the initial realism, whose improvement already allows the digital world to make perfect illusions, we set out for a kind of augmented reality, or immanent artificiality, in which genesis and development, the interference of the collective of cognitive gods, producers, programmers and designers, who perform the creative process, will have a tendency to be dispersed and densified simultaneously into a finer and finer network —full of knots, levels of complexity and diversified degrees of interference, from where the new artificial life will start some day its development.

Meanwhile another paradox remains: the quicker the processors are, the more time and dedication are demanded from those who cause the creative processes.

The goal and the wish always meet a step ahead!


NOTES


  1. In “Exhibition of the Impressionists”, Wikisource. And “Le 28 avril 1874, Louis Leroy écrivait dans un article intitulé “L’exposition des impressionistes”: “Impression, j’en étais sûr. Je me disais aussi, puisque je suis impressionné, il doit y avoir de l’impression là-dedans” — in Impressionisme.

[delivered for publication on April 3, 2010; published by Sines Digital on June 4, 2010]

Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Mental thing


Universal Automata are sculptures printed in plastic from a 3d printer. The sculptures explore the creation of volumetric space through progressions of cellular automata algorithms. Andre Sier.

“Seeds rather than forests”


In the second half of 1997, I conceived an interactive, geo referenced map of my country that would connect a virtual navigation of a map of the territory to websites then exponentially popping on the Internet. The project would finally be presented at EXPO’98 under the name Portugal Digital.

For this purpose, I consulted and brought together several Portuguese institutions: the Instituto Superior Técnico, the Universidade Nova, the Centro Nacional de Informacão Geográfica and the Instituto Geográfico do Exército.

To compile and program the project, I received the help of Joaquim Muchaxo, one of a cluster of IT engineers who made the project viable in time for the big exhibition.

To calculate and visualise in real time all the processes that called up and compiled the data, it was necessary to buy a Silicon Graphics supercomputer, the SGI Onyx2 Reality Engine, with 4 GB of RAM and a 195 MHz processor.

In 1998, the cost of this machine was around 600,000 euros! Today, 13 years later, the same computing power costs no more than 3000 euros, i.e., 200 times less!

Measuring this technological revolution from another angle, for example, that of the virtual population of the Internet, we can confirm that there were 147 million users in 1998 while today the number has risen to 1,966,514,816, that is, it has increased 13- fold.

In little more than a decade, the technological revolution that was underway has led to a cognitive and sensorial fabric that is hybrid, digitally interactive, half-human, half-machine and whose degrees of freedom grant it an enormous linguistic and visual elasticity and a growing, even invasive, ubiquity. From a triangulation of communication satellites, this new superhuman skin is covering the planet with a film of wholly unexpected and transformative meta-reality.

Curiously, in 1999, one year after the presentation at EXPO ’98 of the unknown prototype of what, in 2005, would emerge as Google Maps (the fruit of another venture), André Sier, then a student at AR.CO, was presenting his first computational art project, 0 0 255, which, although inspired by the first-person shooting game Unreal, clearly deviated from the game’s ideology.

While computer and video games follow iconic and narrative models that stem from the imagination and from popular urban culture, not infrequently arising from the vast world of cartoon adventures, animated cinema, and sci-fi literature, the typical stripped-down nature of André Sier’s interactive worlds, while taking maximum advantage of computational engines, algorithms, libraries and available programming languages, clearly point to another cultural tradition: that of the essentialist and analytical aesthetics of one of the most important areas in nineteenth and twentieth-century modern art: the tendency towards abstraction.

Unlike the Jodis’ fantastic deconstructions of games such as Wolfenstein 3D, Quake, Jet Set Willy and Max Payne 2, André Sier follows a more constructivist approach. His distancing from what could be called entertainment, popular culture, commercial art, or the creative industries does not take place under a regime of divergence from this sort of alienated reality, which the Jodi’s hacker ideology so thoroughly distorts and scandalously exposes. Rather, it occurs as a construction of new possible worlds using the same genetic tools that industry uses for purposes as varied as warfare and popular agonistic culture.

Observing Sier’s work, as I have done for many years, I know that it is in itself a progressive record of sedimentation and generative expansion, accumulating strategies, algorithms, possibilities, designs, grammars, libraries, actors, environments and narratives, whether constituted or potential. The pieces evolve in series, precisely because they are worlds of autonomous possibilities which can iterate and gain in complexity, depth, definition and colour by way of automatic, aleatory, genetic and interactive processes, both endogenous and/or exogenous.

What makes the immersive worlds ordered by André Sier so fascinating is the intimate correlation, as it were, that exists between the intuitive drift of his oneiric constructions and the purely mental and logical techne that is rigorously pursued by someone who, in the circumstances of his own conscious creative process, cannot fail to be considered an artisan, or a technician, committed to master a language discipline to better tackle this matter, which invariably resists not only modelling but also the word and the final gesture that heralds the birth of a great work of art. In this case, the mass of the creation consists of zeroes and ones, or more precisely, binary combinatorial processes based on series of 8 bits, 16 bits, 32 bits, 64 bits, 128 bits, etc., the activation of which depends on a bang — the discreet echo of a primordial “big bang” [Mark Whittle: Big Bang Acoustics].


Não Newtoniana (8x) from Andre Sier on Vimeo.
André Sier: continuum

The genetic revolution of products arising from instructions followed and algorithmic possibilities depends, from the start, on a strategic design, or, from the Deist perspective, a demiurge, or rather, that which is between God and the Realised Thing.

During the last century, the long analytical trend in modern art arrived at two apparently antithetical critical movements from which, it was then supposed, Western art would move inexorably towards a phase of revivalist and academic decadence (which was the case). These two movements were known as minimalism and conceptualism. They were two sides of the same coin: the phenomenological reduction of art as an object, or a thing in space-time, and as language.

Finally, a cosmopolitan cultural experiment, oscillating between logical mysticism and the voice of rhetoric, was born out of this dilettante phenomenology. However, things went well until Carl André, Donald Judd, Dan Flavin appeared in the minimalist camp, and Sol Lewitt, Joseph Kosuth and Dan Graham appeared in the conceptual camp. Tragically well!

In some sense, we can now say that the general trend towards abstraction that accelerated after analytical postimpressionism (particularly that of Monet and Seurat), cubism, suprematism, neoplasticism and abstract art at large, reached its end during the 1960s and 70s with the emergence and decline of minimalism and conceptual art, both of which were prisoners of a reductionism that was more metaphorical than genuinely intellectual.

However, they left a legacy which, today, artists like André Sier can legitimately revisit by invoking the philosophical and aesthetic acuity of European art’s inestimable heritage that the renaissance undoubtedly started, and which rationalism, positivism, and German idealism subsequently raised to levels of complexity and metaphysical robustness from which there could be no possible return to the religious narratives that dominated the sentiment and procedures of art for hundreds of thousands of years.

During the twentieth century, literature, fine arts and philosophy itself reached the degree zero of their respective constitutive and cultural paradigms. With forms being stripped to the most radical abstraction – the sort of return to geometry and logic that dominated the spirit of European and American intellectuals and artists from Monet to Roland Barthes – there remained the time in which to anatomise the processes by which several languages, authorial psychoanalysis, and the sociology of reception were generated. 

In 1936, the mathematician, logician and cryptologist Alan Turing had already published his description of a “mental experiment” called the “a(utomatic)-machine”, which would subsequently become known as the Turing machine. A “universal Turing machine” (UTM) is a machine that manages to simulate any other Turing machine (1948), and the Turing test is a way of assessing a machine’s ability to display intelligent behaviour.

During the Second World War, Turing was recruited by Winston Churchill to help the British Intelligence to decipher the coded messages from the German Navy, the encryption of which was carried out by two rotor-based electromechanical machines, the Enigma and the Lorenz (the latter being used strictly to encrypt the messages of the German high command). At the time, German submarines were responsible for sinking thousands of ships, particularly civil vessels which transported people, provisions, equipment and various materials (particularly for the war) between the American continent and wartime Europe. The German encryption machines, the origins of which dated back to the First World War (1914-18), seemed impossible for the Allied human cryptologists to break. It was then that Alan Turing, a member of the team of cryptologists working at Bletchley Park, also known as Station X, and his theories about computational numbers and automatic machines left an indelible mark on the procedures that led Tommy Flowers, the Post Office Electronics Engineer, to design and finally build a machine that was capable of emulating the coding operated by the rotors of the Lorenz and thus to decipher the messages of the German high command on the eve of the Allied landing in Normandy, known as D-Day.

Colossus Mark I and Colossus Mark II were therefore the first two electronic machines designed to digitally process information that were ever built for practical purposes, as well as being the absolute pioneers of modern day computers. This brief historical incursion is important if we are to understand the founding epistemological leap taken by what can properly be called the start of the postmodern era. In other words, the moment from which the understanding and human manufacturing of possible worlds moved, at least partially, from work that was merely human, physical and intellectual to the work of intelligent machines. Rather than painting forests or building worlds as Brian Eno said in a particularly elegant and poetic formulation, the postmodern creator, a sort of agnostic and post-industrial monist, devotes himself to sowing generative principles from which he expects new harmonic constellations to emerge – “seeds rather than forests.”

John Conway’s cellular automata (developed by Bill Koster and Stephen Wolfram, among others), Karl Sims’s genetic algorithms, and Craig Reynolds’s swarms are some of the paradigms of the new emerging culture in which André Sier is clearly located, along with many other contemporary, or rather post-contemporary, creators (to the extent that their creations are not “actual” but potential, incorporating past, present and potentially future states). Being among the youngest of the cognitive and computational Portuguese artists, André Sier is one of their most serious, original and remarkable representatives.

There is still a learning curve to be climbed regarding the dynamic reception of generative and interactive works that have been created outside of the strict disciplines of music, environments, and installations aimed purely at the ear. Responsibility for this cultural delay primarily falls upon the conservative inertia of the museum and gallerybased world of so-called “contemporary art.” While popular electronic culture has progressed at an exponential rate, as incontrovertibly attested by the sociological, economic and strategic importance of the games industry, the generative and cognitive arts in general remain encapsulated in a sort of “pre-artistic” limbo, as if they were strange beings which were not yet fully entitled to enter the “adult” world of art. This institutional delay will be overcome, probably after a big bang, which I believe lies around the corner. When we least expect it, the cognitive and generative arts will enter our neurones with the same apparent naturalness, speed and irresistible impregnation as an algorithm as revolutionary as that which led to the birth of Google. The preparatory work has been underway for a long time and the philosophically possible worlds of André Sier are surely part of the swarm that will produce the next big change in the τέχνη (techne).

Finally, in this brief introduction to the exhibition that André Sier had at the Museu de São Roque (Lisbon) I will leave you with some notions to remember when we see, hear, feel, perceive and interact with some of the pieces that make up uunniivveerrssee.net:
  1. The perceptive environment is multi-modal: space, object, sound, image, interaction, retroaction, ghost, connection, network, sharing, suspension, interval, continuation, potential.
  2. uunniivveerrssee.net is not a finite world but a cosmogony of possibilities, computationally generated on digital foundations with various (32-bit and 64-bit) extensions. In this case, sentences like “I went to see André’s exhibition”, or “I liked Siers’s installations”, are incomplete and describe only the memory of a highly incomplete and ephemeral perception of the potential reality inscribed in the works of art on offer, the apprehension of which actually requires the apparently infinite time of games.
  3. Creatures imprinted and taken from the digital world of possibilities, inscribed or unleashed by human-machine interaction — a game, individual or collective, whether aleatory or built, shared, or simply an accumulation of possibilities — are the perceptive, sensorial and physical proof of a real emergence that is therefore much nearer to us than the merely fictional or simply virtual worlds of the prehistory of cognitive art.
Copyright © 2011 by António Cerveira Pinto

quarta-feira, 31 de março de 2010

Serralves despede

Museu de Serralves, Porto (sítio web)

“A Fundação de Serralves dispensou 18 colaboradores que asseguravam as várias valências dos serviços de recepção aos visitantes, incluindo atendimento ao balcão, bilheteira, bengaleiros e telefonista. Os visados, que, segundo a directora de recursos humanos, Cristina Passos, serão “cerca de 15″, receberam na semana passada uma carta da directora-geral, Odete Patrício, na qual esta os informava de que os respectivos “contratos de prestação de serviço” cessariam no próximo dia 12 de Abril” — in Público.

Ora aqui está uma fonte de inspiração para os  artistas pós-conceptuais da nossa praça! Talvez algum curador queira também abordar este tema numa próxima exposição… no Museu de Serralves!

Há já uns anos que venho dizendo que os museus de arte “contemporânea” terão que evoluir para Centros de Arte Comunitária, pois as bases históricas, económicas e sócio-culturais do museu convencional (de que o dito “museu de arte contemporânea” é um sucedâneo) morreram!

Disse-o numa conferência na Caixa de Barcelona em 2005, depois de reparar no número dos sem-abrigo que viviam nas imediações da fundação cultural mais rica de Espanha. Dois anos ou três anos depois a Caixa mudava de estratégia…

Entre nós, país falido (nas empresas, no Estado e nas famílias), mais cedo ou mais tarde, de forma indecorosa, ou com inteligência e humanidade, abandonaremos o cosmopolitismo burocrático que há décadas vem pervertendo a formação de uma autêntica elite criativa.

Os modelos especulativos da Ellipse Foundation (uma verdadeira Fundação Eclipse), e do Museu Berardo, a experiência falhada à nascença do desmiolado  Museu do Chiado, e agora Serralves (um museu subsidiado directamente pelo Estado, e indirectamente por grandes empresas que vivem do Estado) chegaram ao fim.

Vamos precisar de discutir estas matérias quanto antes. Pois o futuro imediato pode cair que nem uma bomba sobre tudo isto!

Meter a cabeça debaixo da areia seria a pior solução.

PS: voltarei a este tema em breve — 31 março 2010.

Copyright © 2010/ 2011 by António Cerveira Pinto

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Caverna comun

Contas de contar, contas de arte


por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
 
Lebombo Bone (ou Osso do Lubombo - ca. 35 000 anos (1)
“La monnaie, – quelle que soit la définition qu’on adopte – c’est une valeur étalon, c’est aussi une valeur d’usage qui n’est pas fungible, qui est permanente, transmissible, qui peut être l’objet de transactions et d’usages sans être détériorée, mais qui peut être le moyen de se procurer d’autres valeurs fungibles, transitoires, des jouissances, des prestations. Or le talisman et sa possession ont, quant à nous, très tôt, sans doute dès les sociétés les plus primitives, joué ce rôle d’objets également convoités par tous, et dont la possession conférait à leur détenteur un pouvoir qui devint aisément un pouvoir d’achat” — in Les origines de la notion de monnaie, Marcel Mauss (1914).
As contas de casca de ovo de avestruz, ou realizadas com pequenos búzios (cauri), pérolas, botões, vidro, etc., o gado bovino que se deslocava (e ainda desloca) às feiras como principal moeda de troca, o sal, o ouro e outros metais e ligas metálicas, desempenharam desde o início da humanidade (Homo sapiens sapiens) —em alguns casos até aos dias de hoje— a função de moedas-mercadorias. Mas se o gado, o sal e os metais podiam ser trocados pelo seu imediato valor de uso, dependendo o valor de troca destas moedas-mercadorias da respectiva origem e qualidades intrínsecas (nomeadamente genéticas e sanitárias), já no que respeita aos colares de contas a apreciação derivava e deriva necessariamente de uma dimensão sobretudo simbólica, reforçada por certos atributos tais como, a raridade, a originalidade, a estranheza, a cor e a forma — natural ou derivada de uma especial, qualificada e autorizada incisão humana, por sua vez rodeada de uma aura de mistério, magia e sedução.
“Schurtz remarque d’ailleurs très finement, après Kubary qui avait fait l’observation dans les Iles Palaos, que l’argent ne fut pas primitivement employé à l’acquisition des moyens de consommation, mais à l’acquisition de choses de luxe, et à celle de l’autorité sur les hommes. Le pouvoir d’achat de la monnaie primitive c’est avant tout, selon nous, le prestige que le talisman confère à celui qui le possède et qui s’en sert pour commander aux autres.” — idem.
Rai stones, as maiores moedas conhecidas, em uso na ilha de Yap, Micronésia, há mais de 500 anos.

Parece pois ter existido um sincretismo inicial onde a colecção de objectos decorativos, a téchnê, e a memória das trocas entre humanos confluíram para uma espécie de narrativa metafísica inaugural das relações entre tudo o que é percebido, sentido e vivido. Daí que as perfurações e os cortes, incisões e talhes (1) que acompanham os primeiros desenhos humanos —em conchas e perónios de babuínos, e antes e depois desta exteriorização, certamente, sobre o próprio corpo humano— pareçam ter servido ao mesmo tempo para consagrar rituais de dádiva e troca simbólica, para apreender o mistério imanente a uma súbita intensidade da actividade cognitiva relacional, acompanhada da emergência surpreendente de uma nova subjectividade concreta (estética), bem como para estabelecer a primeira pragmática da representação algorítmica da contabilidade do tempo, das trocas e das acções. Mas o que poderá ter sido decisivo neste transe evolutivo da humanidade, que do ponto de vista da teoria de arte, continua incompleta, é a aliança congénita entre religião (i.e. a política), conhecimento e representação, sendo a representação sobretudo um sistema de pontes técnico-simbólicas destinadas a iluminar os objectos da atenção selectiva, e a transfigurar depois o conhecimento crescente dos mesmos num regime evolutivo de representação a que chamamos linguagem: desenho, pintura, escrita, numerologia (unária, binária, digital-decimal, etc.)

Medieval Exchequer Tallies, ou Talhas de Fuste, Alpes suíços (2)
“Mais n’y a-t-il pas là un sentiment encore très vivace chez nous ? Et la vraie foi que nous nourrissons vis-à-vis de l’or et de toutes les valeurs qui découlent de son estimation, n’est-elle pas en grande partie la confiance que nous avons dans son pouvoir ? L’essence de la foi en la valeur de l’or ne réside-t-elle pas dans la croyance que nous pourrons obtenir, grâce à lui, de nos contemporains les prestations – en nature ou en services – que l’état de marché nous permettra d’exiger ?” — ibidem.
Jared Diamond identifica no seu livro Guns, Germs and Steel — The fates of Human Societies, uma mudança fundamental na evolução humana, ocorrida há uns 50 mil anos atrás, a que chamou Great Leap Forward, e que caracteriza deste modo:
“Human history at last took off around 50,000 years ago, at the time of what I have termed our Great Leap Forward. The earliest definite signs of that leap come from East African sites with standardized stone tools and the first preserved jewelry (ostrich-shell beads). Similar developments soon appear in the Near East and in southeastern Europe, then (some 40,000 years ago) in southwestern Europe, where abundant artifacts are associated with fully modern skeletons of people termed Cro-Magnons. Thereafter, the garbage preserved at archaeological sites rapidly becomes more and more interesting and leaves no doubts that we are dealing with biologically and behaviorally modern humans.”
Sem entrarmos na controvérsia das datas, que segundo alguns autores poderiam fazer recuar o Great Leap Forward do Homo sapiens sapiens, dos 50 mil anos considerados por Diamond, para 80 mil, 75 mil e 70 mil anos, se aceitarmos as datações da Caverna de Blombos para os primeiros utensílios de osso, contas de casca de ovo de avestruz e um fragmento de argila com uma banda de cruzes ali encontrados, parece consensual identificar como traços distintivos do Homem moderno a concomitância das seguintes características: produção de utensílios e ferramentas de caça e trabalho estandardizados (bifaces, pontas e agulhas de osso), mais precisos, polidos e diversificados que os do Homem antigo; colecção, manipulação e criação de fios de contas decorativos, eventualmente associados a rituais de troca simbólica (Potltach); invenção e inscrição de signos abstractos sobre superfícies externas, no que pode ser considerado o percurso inicial e porventura iniciático da representação (imagem, escrita e cálculo.)

Artefactos encontrados na Caverna de Blombos

A primeira conclusão inequívoca a deduzir dos achados é que o primeiro que encontramos, já no Homem antigo do Paleolítico Inferior (2,6 milhões a 100 mil anos atrás), antes de quaisquer representações ou transformações simbólicas, antes de quaisquer algoritmos, e antes da mais primitiva forma de dinheiro, é a invenção e o uso controlado do fogo, há 1,4 milhões de anos, em África, e rituais funerários no Paleolítico Médio, há cerca de 300 mil anos. Ou seja, a téchnê e a percepção transcendental da morte surgem já entre os hominídeos mais evoluídos. Só depois, muito depois —no seio dos Homo sapiens sapiens, nomeadamente daqueles que acabaram por ser os nossos directos antepassados— parecem ter surgido as primeiras tentativas de representação dos valores cognitivos guardados na memória tribal, e sua posterior reificação numa escala de valores.

Quem desde sempre lascou a pedra (dos primeiros bifaces e pontas de lança até aos diamantes lapidados à venda nas lojas de Antuérpia), e depois moldou a argila, furou e poliu as cascas de ovo de avestruz, os búzios e as pérolas, foram pois hominídeos artistas e artistas humanos. Este é certamente um grande enigma, na medida em que registamos uma evolução lógica nos artefactos ao longo dos tempos, mas não uma linha de continuidade entre proto-humanos e humanos modernos. Os hominídeos e grande parte dos Homo sapiens desapareceram para sempre. A raça humana actual, por sua vez, parece descender de uma única Homo sapiens recente (Homo sapiens sapiens): a Eva mitocondrial, nascida há 200 mil anos. Do outro lado desta descontinuidade genética encontra-se, pois, uma evolução razoavelmente lógica dos artefactos! Parece assim haver uma linha contínua do tempo que diz respeito à téchnê, ao mistério, à magia e ao fascínio estético, distinta da descontinuidade genética que separa o pré-humano do humano.

A maioria dos fundadores da téchnê não deixou, por conseguinte, descendência, mas a sua obra preenche mais de 95% da história da pedra lascada. Estes hominídeos evoluídos e Homo sapiens desaparecidos são possivelmente os mesmos que sabiam criar e manter o fogo, usando uma habilidade (e um secretismo?) que desde cedo os distinguiu de entre os membros da família alargada que começou por constituir as primeiras sociedades de pré-humanos. Como passou então a informação destes artistas pré-humanos para os descendentes coerentes da Eva mitocondrial? E, por outro lado, que diferença fundamental existe entre os artefactos dos hominídeos e Homo sapiens desaparecidos, e aqueles que começaram a ser produzidos em Blombos e no Lubombo?

A resposta talvez esteja na emergência dos processos de reificação das relações sociais e estabelecimento de hierarquias sociais, nomeadamente em resultado duma acumulação primitiva de valor! A avaliação, representação e fixação destas novas medições espaciais do tempo e da propriedade, enquanto trabalho e conhecimento acumulados, deve ter introduzido uma determinação inteiramente nova e revolucionária na praxis demiúrgica da téchnê. Talvez tenha começado por esta altura a diferenciação fundadora —e a tensão jamais resolvida—entre entre religião, conhecimento e arte. A religião fixa sobretudo o sentimento e o horror da perda, enquanto a téchnê (i.e. a arte) redime tal frustração através de uma reafirmação surpreendente e inesperada do próprio princípio criativo que a morte insiste em reduzir a nada. O conhecimento, em suma, aparece para devir o que tem sido desde então: uma pragmática do ilusório que avança lentamente por entre as sombras infinitas de uma caverna infinita.

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NOTAS
  1. Um dos mais antigos testemunhos de representação simbólica (35 mil anos?) Primeira régua de cálculo, ou um talismã críptico-religioso e artístico? Descrição:
    “A small piece of the fibula of a baboon, marked with 29 clearly defined notches, may rank as the oldest mathematical artefact known. Discovered in the early seventies during an excavation of the Border Cave in the Lebombo Mountains between South Africa and Swaziland, the bone has been dated to approximately 35,000 B.C. In a description of the bone, Peter Beaumont, an archaeologist who has done extensive work on Border Cave, has noted that the 7.7 cm long bone resembles calendar sticks still in use today by Bushmen clans in Namibia.” – from The oldest mathematical artefact by Bogoshi, Naidoo, and Webb, in What’s the Oldest Mathematical Artifact?
    Cf. com outro objecto muito semelhante, conhecido por Ishango bone.
  2. Esta espécie de varões de medida, ou réguas de valor —tally stick/ split tally (EN), bâton de taille/ bâton de comptage/ bâton de taille partagé (FR), talha de fuste (PT)— serviram em Inglaterra, em França, em Portugal-Brasil, etc., desde a Idade Média até ao século 19 e mais tarde, como instrumentos na regulação de contratos entre pessoas analfabetas, ou entre o Estado e/ou empresas e pessoas que não sabiam ler, nem contar, substituindo-se às moedas convencionais, quando não abundavam, ou quando os contratos envolviam quantias grandes, ou implicavam diferimentos que exigiam formas de registo fiáveis para ambas as partes contratuais. Sobre o significado de talha de fuste:

    # talha de fuste = vara com mossas
    # pelas mossas de pau se mediam os impostos, as multas, as execuções e os alqueires de trigo
    # mossas de pau (modo de contar dos rústicos que não sabiam nem ler nem contar)
    # talho, talha, talhe (da carne, na madeira, no osso, etc.)
    # talho: mossa ou corte dado no pau para marcar a conta — in Diccionario da Lingua Portugueza. Por António de Morais Silva (natural do Rio de Janeiro), Lisboa 1831.

    Sobre o significado de talhe:
    s.m. Estatura e feição do corpo: mulher de talhe elevado.
    A feição de qualquer objeto.
    Modo de cortar uma roupa; corte: o talhe do terno.
    O mesmo que talho.

    Sobre o significado de talha:
    s.f. Ação de talhar, de cortar; entalhe, gravura.
    Porção de metal que se tira com o buril.
    Mão, cartada (no jogo da banca).
    Corda que se amarra à cana do leme para governar melhor nas tempestades.
    Aparelho constituído por um jogo de roldanas de diâmetros diferentes e destinado a levantar grandes pesos; moitão, cadernal.
    Obra de talha, obra de relevo, escultura em madeira ou marfim.

    Sobre o significado de talho:
    s.m. Ato ou efeito de talhar ou cortar; talhamento, talha.
    Corte produzido por fio ou gume: deu um talho no dedo.
    Modo de cortar ou talhar uma roupa; talhe: alfaiate de bom talho.
    Feitio, feição, talhe: letra de bom talho.
    Corte de ramos das árvores; desbaste, poda.
    Corte e divisão da carne para a venda.
    Cepo sobre o qual se retalha a carne.
    Açougue.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Joana Vasconcelos - Marylin Inox

Joana Vasconcelos, a pós-vanguarda no feminino
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO


Joana Vasconcelos—Marylin, Museu Berardo, CCB ©Foto: Filipa Figueira, 2010.
“Marilyn”, da artista portuguesa Joana Vasconcelos (n. 1971), foi leiloada hoje na casa Christie’s por 505.250 libras (573.964 euros). No leilão de arte do pós-guerra e contemporânea, onde se encontram obras de Gilbert & George, Andy Warhol ou Roy Lichtenstein, a base de licitação da peça, um par de sapatos gigantes realizados com panelas e tampas, era de 100 mil a 150 mil libras (115 mil a 172 mil euros). — Público online.

Lembro-me de ter visto pela primeira vez um dos sapatos de “Marylin”, feito com tachos inox, numa feira comercial dedicada ao imobiliário e soluções para arquitectura, jardins e intervenção urbana. O grande sapato reluzente de ponta alta surgiu-me de chofre, sem passar sequer pela minha cabeça que haveria por ali escultura, e muito menos uma obra de Joana Vasconcelos. Mas era do que se tratava. Ali estava, irresistível a quem rodeava o enorme sapato e por ali ficava alguns minutos sorrindo e voltando para trás e para a frente, tentando resolver o puzzle. Parecia um sapato de diamantes. Mas não era. Era, sim, um objecto gigante feito com mais de uma centena de tachos inox soldados uns aos outros. Disse para comigo: isto deve ser mais uma partida da Joana. E era!


Joana Vasconcelos foi durante muito tempo, e porventura ainda será, uma artista menos considerada entre as vanguardas de sucedâneo que abundavam na arte portuguesa do final do século passado. Recordo ainda, e agora posso partilhar o momento publicamente, das pressões que em 1999 sofri para não inclui-la na Bienal da Maia que então comissariei na ilusão de poder transformar aquele evento suburbano numa realização periódica com dimensão internacional. Não vou entrar em pormenores, mas no mínimo, dizia-se que a personagem era insistente e trucidante, e a obra, no mínimo, Kitsch (como se este último epíteto pudesse então ser um mau presságio, ou uma nota negativa!)


Eu procurava vislumbrar quais os valores mais promissores da jovem arte portuguesa (e chinesa de Xangai!) naquele final do trágico século 20. Fui abrangente e extensivo, insistindo numa espécie de pedagogia inclusiva e aberta, num terreno que sabia estar já muito minado por jogos de poder, de controlo e de exclusão competitiva. A lista de participantes foi quase exaustiva no que então me pareceram ser hipóteses em aberto que mereciam conviver numa mesma exposição e dar lugar à ideia de que existia uma nova geração de artistas dignos da atenção pública, e da atenção das galerias de arte, dos museus e das revistas da especialidade, mas também das instituições públicas. 

Os anos 90 tiveram pois duas exposições —uma a começar a década, e outra a fechá-la— onde tive a oportunidade de sugerir um arejamento da percepção portuguesa do seu potencial plástico. Nomes como Miguel Palma, Carlos Vidal, João Onofre, João Tabarra, Augusto Alves da Silva, Filipa César, Alexandre Estrela, Francisco Tropa, Jorge Queiroz, Noé Sendas, Rui Toscano, Rui Calçada Bastos e Joana Vasconcelos, entre outros e outras, foram escolhas assumidas para a BM99, quando ainda pesava (ou ainda pesa) uma espécie de monopólio dos oportunistas Anos 80 sobre os centros nevrálgicos do poder das artes em Portugal. O tempo deu razão às escolhas que então fiz e que outros observadores atentos de então também partilhavam, mais ou menos em surdina!


O que porventura distingue a obra de Joana Vasconcelos, e incomoda muita gente, é a sua flagrante frontalidade plástica, franqueza feminina e genuíno espírito do lugar. Tal como Paula Rego, Joana Vasconcelos sabe lidar com o barro da espécie, sem maternalismo, nem sub-capas finas de conceptualismo requentado, nem “liricoidismo” literário (a expressão feliz é de Joaquim Manuel Magalhães) de nenhuma espécie. A bilros o que é de bilros, e que não se confundam com kilts!


E no entanto nada há de atávico ou provinciano na obra de Joana Vasconcelos, como obviamente há, por exemplo, na pintura de Graça Morais. O delírio humorístico e arguto das suas confecções e do seu bricolage é profundamente urbano e sofisticado naquela acepção genuinamente Pop que impregna os percursos de Louise Bourgeois, Paula Rego, Andy Warhol, Jeff Koons, Paul McCarthy e tantos outros e outras. Há uma truculência genial nos temas, nas escalas, nos materiais e nas anedotas da sua extravagante casa de bonecas neurasténicas (ver esta reportagem). E é precisamente esta franqueza narrativa e construtiva que falta em muitos outros artistas cujo potencial não consegue ultrapassar o limiar perigoso da verdadeira liberdade criativa. Joana não é, de facto, nem uma artista epigonal, nem um sucedâneo sem cafeína e politicamente correcto —”para inglês ver”— da última capa da Artforum (ainda existe?) Apetece-me voltar a dar um passeio pelo seu trabalho.

Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Coleccionar búzios

Nassarius kraussianus shell beads from the 75,000 year old levels at Blombos Cave - a) aperture made with bone tool; b) flattened facets produced by use wear, probably by rubbing against other beads, string or gut; c) ochre traces inside shell, possibly transferred from body of wearer d) shell beads external view.
Image created by Chris Henshilwood & Francesco d'Errico (in Wikipedia)

Da arte ao dinheiro

por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Descobri uma coisa interessante num livro excepcional que estou a ler neste momento (Guns, Germs and Steel, de Jared Diamond): os antepassados hominídeos do "homem moderno" andaram por cá há 5 ou mesmo 9 milhões de anos. O "homem moderno", nosso antepassado directo, que poderá ter origem na célebre africana Eva mitocondrial, iniciou a sua longa caminhada há tão só 150 mil anos, e o que do ponto de vista antropológico lhe confere a humanidade plena e o título de Homo sapiens evoluído é —para além de enterrar os mortos e cuidar dos doentes, e fabricar instrumentos normalizados simples ou compostos— o facto de fabricar jóias, i.e. a arte! As primeiras bijouteries que se conhecem são contas feitas com casca de ovo de avestruz, descobertas nas costas Sul e Leste de África. A arte começa pois por ser o resultado privilegiado de uma téchnê, mas ao mesmo tempo —ou pouco tempo depois— transforma-se numa moeda de troca. As contas feitas de casca de ovo de avestruz, de conchas do mar, de carapaça de tartaruga, etc, começando talvez por desempenhar uma função simbólica nos rituais matrimoniais, transformaram-se subsequentemente em objectos-valor, em símbolos e testemunhos de alianças, trocas e comércio — shell-money. Este é aliás o ponto por onde podemos começar a entender a natureza híbrida, simbólica e especulativa da arte, bem como das suas relações com a riqueza, o poder e o amor. Um shot explosivo!

As contas feitas com búzios, encontradas no interior escavado da Caverna de Blombos, na África do Sul, no início deste século, terão qualquer coisa como 75 mil anos. Desde 2002 que vêm sendo estudadas e são consideradas os mais antigos testemunhos de objectos manipulados pelo Homo sapiens com propósitos simbólicos, decorativos e possivelmente económicos (1). Nesta mesma escavação foi encontrado um pedaço de argila com uma banda gravada de losangos cuja idade estimada, 70 mil anos, faz dela a mais antiga representação simbólica que se conhece.

Caverna de Chauvet — pinturas com ~30 mil anos

Os exemplares mais antigos das famosas pinturas e gravuras europeias de Lascaux e Altamira datam de há cerca de 18 mil anos, enquanto o surpreendente catálogo de pinturas e gravuras de animais mansos e agressivos descobertas em 1994 na Caverna de Chauvet (Sul de França), cujas datações ainda decorrem debaixo das controvérsias habituais, aponta para idades mais longínquas, próximas dos 32 mil anos.

A distância temporal entre, por um lado, as primeiras representações simbólicas —abstractas e lineares, mas formando já padrões regulares—, alojadas no mesmo sítio das primeiras formas decorativas —de mera apropriação/colecção/uso— africanas —, encontradas na Caverna de Blombos, e, por outro, as figurações fantásticas do final do Paleolítico Superior é muito grande: pelo menos, 10 mil anos!

Os primitivos hominídeos que evoluíram em direcção ao Homo sapiens terão aparecido à face da Terra há 2,5 ou 2,6 milhões de anos. E é no longo período que decorreu entre 500 mil e 200 mil anos antes da nossa era que o Homo sapiens adquiriu, muito lentamente, um conjunto de habilidades e faculdades mentais capazes de o levar finalmente a iniciar o domínio das estratégias e técnicas da representação simbólica. O salto epistemológico e estético, que Jared Diamonds chama Great Leap Forward, terá ocorrido há uns 50, 60 ou 75 mil anos atrás. Em 1986 investigadores da Universidade da Califórnia defenderam, na sequência de um longo e amplo estudo de arqueologia genética baseado no rastreio do DNA mitocondrial, que a humanidade actual, toda ela, derivaria, não de uma diversidade de famílias de Homo sapiens, mas de apenas uma, localizada em África, e com cerca de 200 mil anos. A chamada Eva mitocondrial será assim a provável mãe primordial de todos nós. Toda a arte conhecida derivará pois, de acordo com esta hipótese científica, das práticas avançadas e porventura tardias desta linhagem africana, de que os artefactos encontrados na caverna de Blombos seriam as primeiras evidências concretas.

Se tudo isto é verdade, podemos talvez reiterar cinco tópicos básicos para a compreensão do fenómeno da arte:
  1. Os primeiros hominídeos, ramo especialmente dotado derivado de uma espécie de macaco (de onde saíram também os antepassados dos gorilas actuais e os antepassados de duas variantes de chimpanzé), nasceram em África à cerca de 7 milhões de anos (entre 5 e 9 milhões de anos, para ser mais preciso); estão muito longe de serem humanos propriamente ditos — não se lhes conhecendo faculdades de representação simbólica, nem de imaginação criativa;
  2. No grupo dos proto-humanos —hominídeos que se endireitaram e viram aumentar a sua capacidade craniana— encontram-se os Australopithecus (3,9 milhões de anos), os Homo habilis (1,5 a 2 milhões de anos), e os Homo erectus (1,8 milhões de anos a 300 mil anos); apesar de usarem instrumentos rudimentares de pedra lascada, não são ainda humanos propriamente ditos — não se lhes conhecendo faculdades de representação simbólica, nem de imaginação criativa;
  3. O chamado "homem moderno" —um Homo sapiens evoluído, com mais de 50 mil anos— caracteriza-se por saber cuidar dos seus doentes, desenvolver rituais funerários, construir ferramentas multi-partes, desenvolver comportamentos de observação sistemática, coleccionar conchas e outros objectos menos duráveis, e ainda por ter sabido especializar capacidades comunicativas e de representação simbólica com resultados evidentes nos vestígios que deixou —nomeadamente as contas de colar de casca de ovo de avestruz (75 000A) e os pedaços de argila gravada encontradas na caverna de Blombos (70 000A) , ou as extraordinárias pinturas da Caverna de Chauvet (32 oooA);
  4. A capacidade de formular representações simbólicas do entendimento e das percepções, e a imaginação criativa em geral, são traços culturais decisivos que separam o homem inteligente e estético dos seus antepassados proto-humanos —sendo mais provável que uma tal evolução tenha resultado de interacções sociais e novos condicionalismos culturais, do que da lenta metamorfose corporal e cerebral da espécie;
  5. Os colares de contas de casca de avestruz, de búzios, de pérolas, de sementes, de vidro, de bauxite, etc., acompanham a história da humanidade desde as suas primeira manifestações artísticas conhecidas até aos dias de hoje —desempenhando simultaneamente funções decorativas, simbólicas e propriamente monetárias, por uma espécie de investimento transversal e multi modal de valor, e de capacidade de atracção universal.
O ponto talvez crucial das observações aqui reunidas que o recente leilão espectacular do L’Homme Qui Marche I de Alberto Giacometti me despertou é essa persistente relação íntima entre o valor material e o valor simbólico associado aos objectos decorativos e simbólicos —frutos de uma clara technê (τέχνη) humana. Não é o trabalho rotineiro acumulado que também existe concentrado na forma de uma obra de arte (seja esta uma "arte menor", puramente decorativa, ou efémera, seja esta uma "arte maior", ou "fina", complexa, polissémica ou alegórica), que potencia o "valor incalculável", verdadeiramente especulativo — no sentido da estrita imprevisibilidade — que a mesma pode atingir em contextos agonísticos especiais, como seja o de um leilão. Há muito mais! Mas o que é? Onde está e o que é esse atractor —certamente no âmago da definição teórica e da génese da obra de arte— que assegura simultaneamente a sua duração e potencia o seu impacto irresistível e universal?
Talvez o segredo esteja no nascimento de um tempo novo, empregue no desenvolvimento de uma parte inexplorada do cérebro durante o longo e duro período em que os hominídeos e proto-humanos deambularam pelo planeta, caçando porventura em tribo, mas sem ter tempo para desenvolver relações sociais complexas e estratagemas de sobrevivência mais sofisticados, à altura da evolução morfológica do corpo (oponibilidade do polegar, deslocação vertical, especialização da visão, crescimento da cavidade cerebral) e da mente (com maior disponibilidade para exercitar algumas das zonas até então adormecidas por uma dedicação exclusiva da vida às tarefas da sobrevivência e da defesa).

Chamemos a este tempo novo, tempo da representação, tempo da criatividade, tempo do pensamento lateral, tempo da preguiça!

Será por este carácter excepcional do emprego do tempo que a fama e as prerrogativas especiais da arte chegaram até onde chegaram? Estarão na cogitação e distracção criativas as causas difíceis de descrever, mas nem por isso menos óbvias, e menos eficientes, da excepcionalidade da arte e do seu valor? Será esta originalidade espacial-temporal que explica o valor de refúgio espiritual, mas também material da arte? Não sei, mas gostaria de saber.
Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto


NOTAS
  1. Contas de conchas de Nassarius gibbosulus encontradas na Grotte des Pigeons (Taforalt Cave, Marrocos) foram entretanto (2007) datadas de há 82 mil anos — PNAS.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A expectativa do valor

Alberto Giacometti — L'homme qui marche - I
©Photo: EMMANUEL DUNAND/AFP/Getty Images
De onde vem o preço de uma obra de arte?
by ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
A life-size bronze sculpture of a man by Alberto Giacometti has been sold at auction in London for the world record price of £65,001,250.
It took just eight minutes for bidders to reach the hammer price after L'Homme Qui Marche I opened at £12m at Sotheby's auction house.
Sotheby's said it was the most expensive work ever sold at auction. (BBC News, 05-02-2010)
O leilão que teve lugar na Sotheby's londrina no dia 3 de Fevereiro de 2010, em plena crise mundial dos mercados financeiros, os quais assistiriam no dia seguinte a um afundamento global (1), por efeito dos temores causados pelos excessos de endividamento de pequenos-médios países como a Grécia, Portugal e Espanha (depois do que já se sabia da Islândia, da Irlanda e de vários outros países bálticos e do Leste europeu), não deixa de ser surpreendente. Quando centenas de milhar de empresas em todo o mundo fecham as suas portas, atirando para o desemprego milhões de pessoas, quando até se avolumam dia a dia as dúvidas sobre a capacidade de países como o Japão, Estados Unidos, Reino Unido, Islândia, Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha, e um longo etc., assumirem as suas dívidas soberanas, numa nocturna sala de leilões em Londres, L'Homme Qui Marche I, do escultor suíço Alberto Giacometti é arrebatado pela astronómica quantia de 74,1 milhões de euros. Nesse dia os mercados europeus, à excepção de Lisboa e Madrid, tinham fechado em ligeira alta. Mas na manhã seguinte, a fúria deflacionista da recessão mundial fez-se de novo ouvir!

O Capitalismo global tornou-se um imenso casino de apostas, onde a obtenção de ganhos fáceis cresce, nas cada vez mais complexas e sofisticadas plataformas electrónicas da especulação financeira, muito para além da riqueza real produzida no mundo. O que comanda os lances deste jogo infernal são as expectativas — expectativas do consumo, expectativas de sobre- exploração do trabalho, expectativas de investimento, expectativas de lucro fácil. Na base deste imenso jogo especulativo em torno da expectativa, o mundo Ocidental, ou antes o Capitalismo ocidental e tardio, produziu uma tecnosfera onde as pessoas envelhecem sem trabalho nem protecção, onde as máquinas inteligentes remetem o trabalho humano para um limbo de extinção a prazo, e onde a medida do crescimento é autofágica: quanto mais se consome, mais se investe, quanto mais se investe, mais se delapidam os recursos finitos à disposição e mais desperdício programado é induzido nesta caduca forma de economia.

Mas não é tudo! O mais extraordinário mesmo é o inimaginável nível de endividamento a que a Globalização capitalista conduziu as empresas, os governos e as pessoas. A economia que agora entrou em derrocada é uma economia do futuro convencionada, no sentido em que, ao longo dos últimos vinte anos, esta espécie de economia virtual tem vindo a inchar sobre uma enorme pirâmide Ponzi chamada precisamente mercado de futuros. A sustentabilidade fictícia deste futurismo financeiro assentou única e exclusivamente num sistema de segurança de créditos a que se deu o nome de derivados financeiros (ou Derivatives), mas que se viria a revelar, como confessou Warren Buffett, uma verdadeira Arma Financeira de Destruição Maciça ("financial weapons of mass destruction"). Numa economia global onde a especulação se foi sobrepondo rapidamente ao mundo da produção, este endividamento sistémico deu lugar ao aparecimento de um casino global orientado para a especulação desenfreada com os próprios mecanismos inicialmente engendrados como formas sofisticadas de segurar os riscos do endividamento! O resultado foi este: o mercado dos derivados financeiros tem hoje um valor nocional (2) de mais de 680 biliões de dólares, enquanto o PIB mundial não vai além dos 61 biliões (3). Ou seja, a pirâmide de contratos especulativos que supostamente seguram a economia mundial —o valor financeiro dos bancos, das empresas, dos fundos de pensões e investimento, das dívidas soberanas e do bem estar das famílias e dos indivíduos— traduz um potencial de risco de colapso financeiro dez vezes superior ao PIB do planeta (4). Se todos os contratos de derivados financeiros ruíssem em cascata (o que obviamente nunca sucederá) precisaríamos de mais de dez anos para reparar os estragos. No entanto, ainda que o colapso dos derivados financeiros seja parcial e gradual, o resultado de fundo será provavelmente o mesmo: 7, 10 ou 12 anos de vacas magras e muito sofrimento para centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.

Com foi possível então que uma esquálida figura humana fundida em bronze por um artista Contemporâneo europeu em 1961, que não chegou a satisfazer uma encomenda do senhor David Rockefeller para o conjunto de esculturas públicas da Chase Manhattan Plaza, acabasse por ser vendida a um comprador desconhecido na véspera de mais um afundamento grave das bolsas europeias e mundiais, por mais do dobro do custo inicialmente previsto da Casa da Música do Porto, ou por pouco menos do que o valor da escandalosa derrapagem dos custos de construção deste mesmo edifício assinado por Rem Koolhaas? As obras de arte parecem às vezes gozar de uma propriedade a que os guias mais antigos dos nossos museus chamam "valor incalculável"...

Mas que valor é este? De onde vem? Como pode subir até alturas tão vertiginosas? Deixaremos estas interrogações para um próximo escrito.

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NOTAS
  1. Bolsa de Lisboa afunda com PSI20 a cair 4,5%
    A bolsa de Lisboa seguia hoje, quinta-feira, em forte queda, com o principal índice, o PSI 20, a cair perto de 4,5 por cento. O sector da banca é o que está a ser mais penalizado.Depois de ter aberto em baixa de 0,23 por cento, o PSI 20 seguia às 09:51h a cair 3,59 por cento, com os receios sobre a degradação das contas públicas a reflectir-se no mercado bolsista.Cerca das 11:00h, o PSI 20 desvalorizou 4,49 por cento para 7.481,30 pontos, no pior desempenho desde Novembro de 2008.  — in JN online.

    World markets plunge on European debt fears

    Stock markets in Portugal, Spain and Greece led a sharp global retreat for the second day running Thursday as investors fretted over their governments' ability to get a grip on their borrowings. The euro plunged towards $1.37, hitting its lowest since May. — in Yahoo! News.

    Stock markets plunge over Europe debt fears

    European and American stock markets plunged yesterday as investors took fright over the difficulties in debt-ridden countries such as Greece and Portugal and fears mounted over the health of the world’s biggest economy.There were concerns that Greece may not meet its tough budget plans as workers started the first in a wave of strikes, prompting worries that Spain, Portugal and the Irish Republic may also struggle to cut their soaring debts. In a sign of the scale of the problems, a gauge of the perceived credit risk of Western European nations overtook that of the most stable US companies for the first time. (Times Online, 05-02-2010)
  2. Sobre os derivados financeiros ler este artigo da Wikipedia.
  3. Sobre o PIB mundial ler este artigo da Wikipedia.
  4. Sobre a crise financeira sistémica e suas consequências ler este artigo da Wikipedia.