sábado, 1 de fevereiro de 2020

Amigo!



ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Dizia-me em outubro em Lisboa olhando o Tejo, com o Sol correndo para Nova Iorque, numa celebração que deixava transparecer uma quase imperceptível tristeza, que a amizade formada numa cumplicidade de causas difíceis, que o amarrara a alguns artistas e diretores de museu tão malditos quanto ele, era o mais importante na sua vida. Sorria no terraço do Centro Cultural de Belém enquanto aguardávamos mesa para jantar, depois da inauguração da exposição da Ángela na Galeria Arte Periférica. O abraço de despedida após um jantar de pizzas, saladas e vinhos variados trazia mau presságio. Novembro passara a correr, como sempre, a minha filha Patrícia, o genro Hugo e o neto Adriano tinham ido passar o Natal a Madrid. Do Porto enviei um email desafiando o Antonio para um almoço de Reis em Estremoz, Évora ou Montemor. Não respondeu...

O silêncio que reincidia durante este primeiro mês da nova década foi subitamente cortado por uma delicada mensagem do Antonio Delgado. Antonio Franco tinha um tumor no cérebro, não operável. Tinha emagrecido muito e envelhecera vinte anos, disse-me. Congelei de incredulidade. A Cândida deu um ai de aflição. A comoção encheu a sala e o resto do dia. O pensamento torna-se inútil diante destas perdas.

Foram vinte e cinco anos de convivência, entusiasmo e resistência à realidade que domina. O museu do Antonio, o MEIAC, fez-se contra a indiferença polida de muitos. Na realidade, em Lisboa, Madrid ou Barcelona, ninguém sabe onde fica Badajoz. E em Badajoz ninguém sabe onde fica o MEIAC. Este desconhecimento magoava profundamente Antonio Franco. Não se queixava, mas nós percebíamos o tamanho da ferida. Nunca desistiu, porém, deste amor resgatado dos escombros de uma prisão de má memória. A arquitetura pós-moderna do edifício museu, jardim e espelhos de água, nunca me agradou. Os muros e as pendentes que separam aquele quarteirão da cidade esmagam a vontade do mais educado apreciador de pintura e escultura.

Antonio era pragmático, muito mais do que eu. O que não se pode mudar não se muda, dizia-me rindo-se do mundo. Importava para ele, sobretudo, imaginar os conteúdos, as exposições, as obras, e proporcionar dignidade aos artistas. Cuidava das artes visuais, mas também da literatura e da poesia. Projetos como a revista Suroeste e a Fundação Godofredo Ortega Muñoz eram tão acarinhados como NETescopio—o projeto dedicado às artes digitais, de que foi pioneiro— ou a pintura, a escultura, as instalações, a fotografia e os documentos de centenas de artistas que colecionou ao longo de quase um quarto de século.

Surgiu entretanto a crise económica e financeira mundial de 2008. À medida que esta expandiu as suas metástases e se abateu sobre os orçamentos públicos espanhóis, e em particular das suas regiões autónomas, as dificuldades de produção e organização não pararam de crescer. As aquisições de obras reduziram-se paulatinamente a zero. Antonio sofria em silêncio as repercussões desta crise sobre os artistas. Os escombros e os estilhaços desta espécie de declínio cultural atingiram duramente o Museu Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo. Antonio Franco lutava diariamente contra a escassez de meios e o destino incerto que inexoravelmente se abatia sobre este equipamento cultural público. Uma tragédia assim acabaria por destruir, pouco a pouco, o museu e o seu criador.

Ninguém é profeta na sua terra.

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