terça-feira, 22 de outubro de 1996

Absolut Arte

© V&S Vin & Sprit AB 1996 / David Shrigley
Absolut Art Collection


Um dos mais interessantes debates sobre a implosão das vanguardas modernistas teve início quando a Arte Pop retomou inesperadamente a bandeira do realismo pictórico, apresentando-se como uma terceira via à bipolarização entre o subjectivismo da Action Painting e o formalismo exangue da Post-Painterly Abstraction. O que então caracterizava as vanguardas imediatamente anteriores à Pop era sobretudo a crítica romântica à ideia de uma estabilidade capitalista e a subsequente recusa de enfrentar artisticamente a sociedade de massas, urbana e mediática, que à época ganhava já inacreditáveis proporções. De costas voltadas para a realidade, tal ensimesmamento estético não poderia deixar de perder-se nas impenetráveis torres de marfim que há muito abrigam, por mero atavismo filosófico, a metafísica improdutiva da forma e as transcendências ambíguas do Eu. No caminho, mais de um artista perdeu infelizmente o contacto com a realidade, engrossando o número daqueles que vêem na diferenciação das linguagens e dos sistemas de representação anunciada por Walter Benjamin um evento essencialmente obscuro e imprestável. Na era da reprodutibilidade técnica dos objectos e das representações, o papel e o lugar do artista sofreram forçosamente uma deslocação dramática. A Arte Pop -- e doutro modo também, a Arte Conceptual -- vieram assinalar este facto de uma vez por todas. À distância de duas décadas, a Pop Art não pode pois deixar de ser considerada como uma mudança radical de paradigma estético e como uma surpreendente galeria de retratos sobre o começo da era pós-industrial. Olhando com olhos de ver a nova aparência do mundo, a Arte Pop não hesitou cruzar as fronteiras elitistas entre artes belas e aplicadas que tradicionalmente separam o dito mundo artístico, da publicidade, de Hollywood, da rádio e da televisão. Warhol foi o grande e lúcido intérprete desta radical mutação, e a ele devemos certamente em parte algumas das nossas boas ideias. A deslocação artística em direcção às sociedades tecno- mediáticas tem, todavia, um paralelo no design de comunicação que subtende a panóplia criativa da publicidade, do marketing, dos média e do entretenimento de massas em geral. Assim, e a par dos abalos telúricos provocados pela Benetton, pela Calvin Klein, pela Diesel ou pela Absolut Vodka, cresce entre a multidão planetária de designers o sentimento cada vez mais profundo de que chegou o momento de colocar todo o imenso "know how" acumulado ao longo do último meio século ao serviço de uma criatividade menos comprometida com a troca de objectos. Não é tanto uma revolta contra o capitalismo tardio que é pedida, mas o enriquecimento da paisagem mediática actual, apoiado noutros discursos e mensagens declaradamente vinculados à arte enquanto manifestação urgente de uma subjectividade concreta capaz de gerar e perpetuar um diálogo urbano mais criativo, livre e solidário. A iniciativa da Absolut Vodka, de que esta exposição é testemunha, vem seguramente contribuir para o debate mencionado e em curso. Artistas famosos e desconhecidos têm sido convidados a aproximarem-se de um objecto publicitário numa perspectiva de liberdade criativa. O desafio foi inteligentemente lançado, não apenas aos artistas plásticos tradicionais, mas aos criadores em geral: fotógrafos, designers, estilistas, etc. É certo que a coisa contribuíu para a fama actual do Absolut Vodka. E que, por conseguinte, não há total inocência no acto. Mas ainda assim será necessário reconhecer que os efeitos secundários do projecto são especialmente estimulantes do diálogo que, nos grandes areópagos da criatividade contemporânea, procura renovar os principais paradigmas da comunicação simbólica e da interactividade cultural. Digamos, enfim, que se subsistem tensões entre a comunicação publicitária e a arte, o caminho traçado, entre outros, pela Absolut Vodka inaugurou, para bem de todos, um patamar mais fino de discussão estética e ideológica.

in catálogo
Absolut Watt, Museu da Electricidade, Lisboa
22/10-3/11 1996

terça-feira, 20 de agosto de 1996

Nam June Paik



O deslocamento da expectativa
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
I want to sleep in the morning. Being an artist is the only way to be jobless once in a while without having to be ashamed of yourself. The best ideas occur to me in the twilight zone after I wake up because I'm hungry. When I'm half asleep and half awake, half happy and unhappy, I'm creative.
[in “Extraordinary answers to ordinary questions”]

Não foi Bill Clinton, nem sequer Al Gore, quem inventou a expressão “electronic superhigway”, mas um artista  coreano inspiradamente neo-dadaísta e há muito residente nos Estados Unidos, chamado Nam June Paik. Nasceu em Seul vai para 64 anos, mas a sua produtividade artística parece hoje mais intensa do que nunca. Estudou as grandes inovações introduzidas na música erudita deste século por Arnold Schönberg, Karlheinz Stockhausen, Mauricio Kagel e John Cage. É um performer temperado na tradição futurista, surrealista e Dada (sobretudo oriunda de Duchamp e Satie), bem como nas influências artísticas do Black Mountain College (onde Cunningham, Cage e Rauschenberg ensinaram), dos happenings nova-iorquinos e dos manifestos e concertos Fluxus. Inventou em 1963 a arte video, em torno da qual toda a sua carreira foi sendo progressivamente fixada. Em suma, este surpreendente artista pode e deve ser olhado como um agitador cultural à boa maneira modernista.

Numa demonstração autocrítica bem humorada, declarou um dia que a oposição das vanguardas artísticas à cultura de massas, certamente pelo excelente motivo de não poderem competir com o sucesso de Hollywood, dos concertos rock e das telenovelas, acabou por conduzi-las a uma arte “as boring as possible”, como reza o título de uma exposição apresentada na cidade de Berlim Oeste em 1966.

Em vez de seguir o abstraccionismo minimalista, e em geral a chamada atitude “cool” dominante numa certa vanguarda da sensibilidade americana pós-Pollock, onde até o mimetismo zen parece traduzir uma metamorfose refrigerada do neo-dadaísmo, Paik optou, depois de “Global Groove” (1973),  por retomar uma estratégia maximalista, feita da ligação energética entre o cómico, o absurdo e as falhas de sentido à maneira zen, algumas reminiscências do Popismo então em voga (sobretudo dos ingleses Hamilton e Paolozzi) e ainda a exaltação simultaneamente ingénua e brutalista das tecnologias emergentes da galáxia mediática proclamada por Marshall McLuhan. Em “Global Groove” e ao invés de outras peças, baseadas em tácticas deceptivas, propositadamente monótonas e chatas, o espectador enfrenta uma vintena de televisores mostrando sucessivos, arbitrários e distorcidos momentos de um vídeo de 30 minutos, obtido a partir da mistura, sobreposição e síntese de várias emissões televisivas oriundas das estações francesa, alemã, japonesa, austríaca e ainda algumas africanas. O resultado é estonteante e ilegível, mas na sua forma descortina-se o princípio de uma nova oralidade global (veja-se o impacto da MTV e sucedâneos), bem como e mais sintomaticamente ainda, as ambiências envolventes (acentuadas aliás em instalações posteriores como "Artist as Nomad”, pavilhão alemão da Bienal de Veneza, 1995), no interior das quais o espectador caminha já não como leitor, ouvinte, decifrador, voyeur ou crítico, mas na experimental qualidade de um indefeso banhista irresistivelmente atraído pela expansão cibernética das comunidades pós-industriais e suas linguagens pós-modernas.

"New York made me maximal", confessou Paik à laia de justificação irónica para o seu distanciamento do Conceptualismo mais “cool” que, como ele dizia, produzia o aborrecimento como inútil antítese da permanente afluência de informação e excesso de estímulos perceptivos que caracterizam o capitalismo avançado. “I am a poor man from a poor country. I have to entertain people every second” — acrescentou, fazendo provavelmente referência à sua condição de emigrante e uma alusão crítica ao etnocentrismo cultural americano, à época algo preguiçoso no que respeita à radicalização dos pressupostos destrutivos e desconstrutivos iniciados pela premonitória, embora longínqua, revolução cubista. Não foi por acaso que Paik e outros, na senda de Rauschenberg, retomaram a colagem , derivando para estratégias de editing mais soltas, como a “assemblage”, ou que o alemão Wolf Vostell aplicou o princípio inverso da “des-colagem” no processo de perturbação dos novos ícones mediáticos. De certo modo, pode dizer-se que a novidade da afluência do mundo era tal, que só através de uma edição caótica e multidisciplinar das suas imagens, dos seus objectos e dos seus efeitos, seria possível produzir uma adequada representação simbólica.

A imersão digital, tal como a Internet, vinham ainda um pouco longe, quando Paik apresentou pela primeira vez “Global Groove”, mas o efeito de aquário então induzido por esta estrutura frenética antecipou de algum modo a expansão dramática da comunicação multimédia em redes interactivas e a Realidade Virtual que hoje dominam os noticiários e começam a interessar irreversivelmente o mundo dos negócios. Há pois um motivo especial para o título desta exposição: “Electronic Super Highway: Nam June Paik in the 90’s”.
Boa parte das obras agora apresentadas foi realizada na década de 90. Convirá por isso chamar a atenção para a existência de uma diferença significativa entre a fase mais fria e duchampiana, que corresponde ao percurso criativo entre a sua participação no “Fluxus - International Festival of the Latest Music”, em Wiesbaden, e “Global Groove” (1963-73), e a presente fase de sobreaquecimento alegórico, iniciada com “Good Morning Mr. Orwell”, em 1 de Janeiro de 1984 (o Big Brother afinal não veio !), e a que igualmente pertence o ciclo de esculturas de sucata e antiguidades electrónicas iniciado em 1986 com "Family of Robot": um verdadeiro panteão de familiares e amigos já deparecidos, onde pontuam personagens como Charlotte Moorman, John Cage e Grandfather, ou ainda um rol de novas figuras de estilo como Couch Potato, Global Encoder, Hacker Newbie, ou SYS Cop.

As imagens mais fortes do período de juventude deste coreano convertido ao torvelinho da novidade tecnológica, que desde há muito guardo na memória, descrevem breves fragmentos de três acções protagonizadas pelo próprio e pela sua grande colega e musa, a violoncelista Charlotte Moorman, falecida em 1991.

No primeiro deles, Nam June Paik rasteja com um violoncelo às costas. No segundo, Charlotte Moorman, hierática e sensual como sempre, vestida de cetim comprido até à cintura, e daí para cima nua, com dois minúsculos televisores cobrindo os seios ("TV Bra for Living Sculpture" ), toca impávida e serena o seu cello . O instrumento musical está ligado aos mini televisores, provocando nestes, por cada acorde, sequências imprevisíveis de imagens electrónicas distorcidas. O “ruído”, que é o nome técnico destas perturbações na transmissão electromagnética, nas suas múltiplas e inusitadas manifestações, ajuda-nos a chegar ao cerne de uma imensa alegoria sobre o advento da informação, a avalanche dos objectos, a densidade social, o hiperconsumo e a transformação do planeta numa aldeia global. Trata-se, como sempre acontece na arte, de uma filigrana evocadora da experiência inesquecível. Finalmente, na terceira peça, Charlotte Moorman, com o mesmo vestido comprido de cetim, mas desta vez expondo os seios nus, interrompe uma obra de Saint-Saens, atravessa calmamente o palco e sobe uma escada para entrar dentro dum bidão cheio de água, submergindo nele completamente. Ensopada, mas como se nada tivesse sucedido, regressa ao violoncelo para completar o seu concerto. Poucas mulheres, especialmente com referências equivalentes às de Charlotte Moorman (que era concertista da American Symphony Orchestra), teriam aceite e sabido desempenhar com tamanho escrúpulo disciplinar esta paulatina desconstrução musical de óbvia referência duchampiana.

Apesar de Paik ter visto nesta intérprete erudita uma Joana d’Arc da Nova Música (que acabou por ser despedida da Orquestra...), o certo é que as suas performances não podem deixar de evocar o universo onírico ligeiramente perverso da Mariée duchampiana. Não sei se nos dias de hoje, conduzir qualquer mulher artista a semelhantes actos públicos de submissão erótica, embora continue a ser um desejo caro a muitos artistas, tem algum significado cultural positivo ou é sequer aceitável fora dum contexto de exposição sexualmente mais amplo.

A dobragem recíproca dos tempos da acção real e simbólica, de que as performances citadas são paradigmas, confunde as nossas mais enraizadas convicções sobre o que seja a música, a arte e a realidade em geral, induzindo a sensação desconfortável de uma espécie de levitação epistemológica e moral. Mais do que uma simples relativização terapêutica importada do budismo Tao ou Zen, estas experiências artísticas, pelo lugar e tempo onde ocorreram, têm uma importância não desprezível no cômputo que alguém um dia fará sobre o modo como a arte ocidental se desfez em sucessivas destruições inesperadas procurando ao mesmo tempo definir uma nova identidade através de variados processos de recombinação ideológica, linguística e icónica das representações estéticas do mundo. Tornar transparentes os hiatos subconscientes da razão apodrecida nos inúmeros etnocentrismos herdados da era pré-planetária, numa época em que precisamente faliram as presunções que sustentam a colagem dos significados às respectivas representações da realidade, divergindo-se cada vez mais rapidamente para os actuais regimes autárquicos da produtividade ideológica, simbólica e formal, em que assenta o efeito de manipulação simbólica global a que estamos sujeitos, mas também o isolamento e a nova dispersão dos sentidos, eis um contributo não desprezível do irracionalismo militante promulgado pelos modernistas a que o fio condutor da obra de Nam June Paik afinal pertence na incomodidade característica dos seus objectos ditirâmbicos e das suas declarações.

Os métodos performativos causaram frequentemente algum embaraço público. Assim, no “Estudo concertista para Piano forte”, Paik começou por tocar serenamente um interlúdio de Chopin, interrompendo-o de repente para choramingar sobre os restos de um piano destruído algures na sala. Depois, de tesoura em riste, avançou sobre a audiência, dirigindo-se a John Cage, cuja camisa começou a cortar. A seguir, cortou-lhe a gravata rente ao nó, numa aparente e corrosiva evocação das cerimónias castradoras mais diversas e antigas. Por fim, despejou shampô sobre as cabeças de John Cage e de David Tudor, massajando-as até formar abundante espuma. Abandonou enfim a cena, deixando estupefacta a audiência. Algum minutos após (que a Cage pareceram uma eternidade!) o telefone tocou... Era Paik, comunicando que a acção tinha terminado.

Levaríamos algum tempo a analisar este concerto, e seria em todo o caso necessário descrevê-lo com detalhe, e mostrá-lo, para obter toda a sua carga simbólica e crítica. De qualquer modo, parece certo que o poder evocador desta e doutras acções semelhantes advém da compreensão por nós progressivamente adquirida sobre a natureza linguística dos mecanismos de percepção e designação da realidade. As operações imbuídas na acção e na percepção do mundo são afinal momentos de um jogo linguístico com um certo número de regras e limites contextuais. Se os alterarmos, sobrevém sempre alguma catástrofe, por pequena que seja, que acabará por nos ensinar mais alguma coisa sobre a vida.  Esquecemos, por vezes, de que a fina intelecção do real, a verdade rigorosamente matemática ou a mais intensa fé, continuam a ser Ilusão. Noutras ocasiões, pelo contrário, sentimos inapelavelmente a grande ilusão do mundo como algo em que precisamos de acreditar. Haverá, assim, melhor dividendo para o homem incerto e inquieto de agora, que a demonstração artística destes factos? E haverá também, para quando a certeza da ilusão desespera profundamente cada um de nós, melhor bálsamo para a crise, do que a dádiva indefesa dos ritmos, formas e distracções da arte?

NOTA — publicado originalmente em “O Deslocamento da expectativa”, no catálogo da exposição Electronic Superhighway, de Nam June Paik, Culturgest, Lisboa, 20 Ago 1996.

Copyright © 1996 by António Cerveira Pinto

domingo, 21 de janeiro de 1996

Wonder School

Eva Herzigova — Playboy, 2004.

Sobre a Aula do Risco
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Quando me perguntam o que é a Aula do Risco, hesito cada vez mais em responder que é uma escola privada dedicada à promoção de estratégias de criatividade na produção artística em geral — da escrita criativa ao script para cinema e televisão, do design de comunicação à arquitectura conceptual, do explosivo mundo da multimédia à realidade virtual, ou ainda da fotografia criativa ao diálogo entre a arte e a teoria. Por outro lado, creio que seria igualmente insuficiente afirmar que ela é uma empresa experimental interessada no desenvolvimento de projectos interdisciplinares a partir da generosidade criativa que sobra das rotinas profissionais e dos jovens saídos das escolas e universidades.

De facto, olhando para a minha biografia, comecei há algum tempo a suspeitar que a Aula do Risco talvez seja afinal outra obra de arte, ou a mais recente manifestação do incurável optimismo que subtende a minha agressividade crítica. Os seus participantes não sabem, eu também não sabia, mas parece haver no subconsciente desta Aula e deste Risco o desígnio de conceber, desenhar e construir uma enorme geratriz de Realidade Virtual! 

Não se trata de abandonar o Real. Mas de ordenar num novo espaço de representação a entropia exponencial do mundo virtual que corre nas nossas veias e no mais insondável do homem tecnológico. Do you know Eva Herzigova? 

Ela é uma das muitas heroínas virtuais da aura mediática. O seu corpo tem a rigorosa espessura de uma imagem. A presença dela no mundo é puramente virtual, pois só uma presença virtual faz, neste caso, sentido. Ao contrário das pessoas com que nos cruzamos diariamente, Eva tem para nós uma existência paradoxalmente indubitável: não duvidamos da sua realidade, não a confundimos com uma personagem dramática, fica-nos na memória e até podemos sonhar com ela, aceite que foi o protocolo da sua imaterialidade. É, se quiserem, uma nova figura filosófica em acelerado processo de digitação!
“Nascida checoslovaca, rapidamente se tornou cidadã do mundo. Bastou-lhe ganhar um concurso de beleza em Praga há 6 anos atrás. A sua imagem sexy e inocente foi um verdadeiro abre-te Sésamo para tudo quanto é revista importante no mundo inteiro. A Vogue , a Elle , a Glamour , a Bazaar  e a Marie Claire  são só alguns exemplos. O mundo da publicidade não foi excepção e rendeu-se aos encantos nada ocultos desta diva. Da Campari  à L’ Óreal , da Complice  à Guess Jeans , passando por Gianni Versace  e Azzedine Alaïa , ninguém resistiu a Eva Herzigova. A campanha do Wonderbra é o melhor exemplo do que ela é capaz”. Mas com a ajuda dos computadores e das interfaces gráficas virtuais poderia chegar mais longe... ou por outra, mais perto! 

Eva Herzigova — Wonderbra, "Hello Boys", 1994

Em Junho de 95 enamorei-me vagamente desta menina com olhos de gata e outros atributos que me escuso agora de descrever. Não sabia o seu nome, mas usei a sua imagem para dissertar jornalisticamente sobre as estratégias do sublime: ao universo das representações auráticas de inspiração divina sucedeu, pouco a pouco, sobre os escombros do Romantismo, um mundo de transparências fotográficas, de comunicação e de telepresença, cuja aura, se o termo ainda serve, é imediata, superficial, espectacular e transitória, tal como a nossa wondergirl e as suas irresistíveis aparições.

Entretanto, as minhas incursões pelo domínio eléctrico e pelas previsões da realidade virtual agudizaram a sensação de que algo de muito crítico está a ocorrer nas interfaces comunicacionais. Será apenas uma fuga, ou o começo das alternativas à implosão social do famoso mundo moderno ?
O que agora chega até nós como mais um gadget da pós-modernidade será apenas isso, ou a primeira manifestação séria de um projecto mais global de civilização conjecturado, quem sabe, entre as viagens ácidas de Timothy Leary e a insídia neo-religiosa da Meditação Transcendental ?
Quando fomos convidados para participar neste evento sobre as Imagens do Futuro , o tema surgiu quase naturalmente: — e se as notícias começarem a surgir em primeiro lugar no ciberspaço?

Lancei o desafio aos alunos. A resposta está aí...

O mundo online, que a Aula do Risco vai abordar ao longo do Ciberfestival , através do seu webzine, ZERO, é uma extensão gráfica com cada vez maiores propensões para a realidade virtual  propriamente dita, do meio social gerado pelas comunicações telefónicas. A interactividade sonora torna-se, na Internet , uma telepresença audiovisual e cibernética onde o humano e a informação interagem no espaço cada vez melhor regulado da computação inteligente. A experiência proposta tem assim dois objectivos desiguais. O primeiro, e mais imediato, procura trazer até ao grande público a evidência de uma revolução sem precedentes, cujos efeitos na incessante partilha dos territórios humanos começa a fazer-se sentir. O segundo, talvez mais difuso e ambicioso nos propósitos, deseja  lançar os termos de uma renovação dos cenários linguísticos que presidem às nossas enraizadas convicções sobre o que seja realidade.

Copyright © 1996 by António Cerveira Pinto