domingo, 16 de dezembro de 2018

Beyond the gaze. Index before the prototype.

Manuel Casimiro
Estrutura de frutas e legumes, 1975
(vista da instalação/ pormenor)

This almost intimate exhibition of Manuel Casimiro seems a provocation.

In one of the gallery spaces, there are paintings on whose green, red, and black backgrounds, para-geometric shapes, lines, and even landscapes, are organized in a kind of polychromatic choreography over space and time. Is it an abstract painting? Is it figurative? Or is it just meta-art? They certainly make a deconstructive approach to representation and to that thing we call Art.

In another area of the exhibition, we come across a series of ‘photographies érotiques’, acquired by Manuel Casimiro in Portugal, but probably produced in France by the end of 19th Century. They epitomize the canons of voyeurism, of course. However, these ‘rectified ready-mades’, as Duchamp would call them, were approached by the so-called ‘casimirian’ ovoids, ceasing to be, as a consequence of this unexpected visit and metamorphosis, just copies of a collection of art in the era of its technical reproducibility (Walter Benjamin), thus retrieving the old authorship and the material uniqueness of the artwork — the one that results from the appropriation carried out by Manuel Casimiro, but also by the unknown author who ‘took’ photographs of equally unknown flesh-and-blood models.

The new originality has thus a double origin, two inscriptions and a reinforced certification, for which a photographer, an industry and a gesture of semiological displacement (‘casimiriana’) converged.

At a time when new forms of puritanism and aesthetic dictatorship lurk in the world of museums, advertising, and art, this metamorphosis of the prototypes of western eroticism at the dawn of Photography, triggered by Manuel Casimiro’s semiotic provocations opens a sweet perspective to what we really are and to what we know.

A different kind of appropriation though is the transformation of Gerard-Georges Lemaire’s book, “L’univers des Orientalistes” (2000), a luxurious anthology on Orientalist painters, into a new place for art making and for art seeing. Writing about this deconstruction a famous Duchamp title came to my mind:

“You take a picture by Rembrandt and, instead of looking at the painting, simply use it as an ironing board.”

Finally, on the floor of the gallery (Espaço Camões/ Livraria Sá da Costa, Lisbon), we can go back in time and see one of the most interesting artworks by Manuel Casimiro:

“Structure of Fruits and Vegetables” (1975).

An invisible orthogonal mesh whose intersections are occupied by tomatoes, potatoes, pears, oranges, and lemons, establishes a rare dialogue between space, matter and time, three archetypes that have long been disputing the top of the podium of philosophical precedence. This piece is perhaps his most assertive work on the impossibility of a strictly monistic view of the world. A kind of sensitive and mental proof that art has always been among us to demonstrate the gross error of any monism. Time, after all, commands the World, or ‘all that is the case’, according to Ludwig Wittgenstein formulation on his Tractatus Logico-Philosophicus: “Die Welt ist alles, was der Fall ist”. Natural beings, after passing away, still rot, serving as pasture to other living creatures, usually very small ones.

Emerging itself from all this, the ‘ovoid’, as Manuel Casimiro calls it, witnesses not only a mark of originality, not just a ‘difference’ congenial to that Structuralism that flourished in France in the 1950s, 60 and 70s, but above all something stronger and anthropological, born from the ‘casimirian’ impression. A glimpse that Alfred Gell would have called an ‘index’.

Casimiro’s ‘ovoid’ announces not only his presence as an author but also the presence of a freshly work of art, regardless of the landscape, ‘abstraction’ or ‘ready-made’ where it pops-up. In one sense, we can say that the ‘casimirian’ world is any place where his fingerprint, that is, the ‘ovoid’ slips in. When occupying someone else’s artwork or artwork simile the appropriation generates a second author: ‘the casimirian world’. In case of Casimiro’s artworks done from scratch, the ‘archeophany’ (Mackay, 2014) generated by the ‘ovoid’ also establishes a second artwork behind, or beyond the first one. In this sense, the ‘ovoid’ stays away from what could otherwise be perceived as a simple signature. Its autonomy and semiotic power work as a positive/negative marker that forces the spectator to a second movement towards perception and meaning.

Manuel Casimiro
Corps-langage, 1976


Para além do olhar, o índice precede o protótipo

Esta quase íntima exposição de Manuel Casimiro parece uma provocação.

Numa das salas dispõem-se pinturas sobre cujos fundos verdes, ou vermelhos, ou negros, formas para-geométricas e linhas, ou paisagens, se organizam numa espécie de coreografia, ou encenação, polícroma sobre espaço e tempo. Pintura abstrata? Pintura figurativa? Meta-pintura? Certamente uma abordagem desconstrutiva da representação e da coisa a que chamamos arte.

Noutra zona da exposição, deparamo-nos com uma série de 'photographies erotiques', adquiridas por Manuel Casimiro em Portugal, mas provavelmente produzidas em França no final do século 19, ou início do seguinte. Em si mesmas, correspondem aos cânones do 'voyeurisme'. No entanto, estes 'ready-made' 'retificados', como diria Duchamp, foram abordados pelos 'ovóides' 'casimirianos', deixando de ser, por causa desta visita e metamorfose inesperadas, exemplares de uma qualquer coleção da arte na era da sua 'reprodutibilidade técnica' (Walter Benjamin), instaurando deste modo uma espécie de reinscrição das autorias e da unicidade material da 'obra de arte': a que resulta da apropriação levada a cabo por Manuel Casimiro, e a do fotógrafo desconhecido que 'tirou' as fotografias dos modelos de carne e osso, igualmente desconhecidos. A sua originalidade passa deste modo a ter uma dupla origem, inscrição e certificação, para o que concorreram um fotógrafo, uma indústria e um gesto de deslocação semiológica ('casimiriana').

Numa época em que novas formas de puritanismo e ditadura estética espreitam o mundo dos museus, da publicidade e da arte, esta metamorfose dos protótipos do erotismo ocidental nos alvores da fotografia desencadeada pelas operações sintagmáticas de Manuel Casimiro abrem docemente um outro olhar sobre a origem, magmática, mas também oceânica, de tudo o que somos e conhecemos.

Uma apropriação diversa é a que resulta da transformação de livro de Gérard-Georges Lemaire, "L'univers des Orientalistes" (2000), um livro luxuoso sobre os pintores orientalistas, num novo lugar de inscrição do fazer arte e do olhar a arte: “You take a picture by Rembrandt and, instead of looking at it, simply use it as an ironing-board.” (Marcel Duchamp)

Finalmente, no chão da magnífica sala virada a Nascente do Espaço Camões da Livraria Sá da Costa, situada na Praça Luís de Camões, onde a Ocupart apresenta esta exposição iniciática de uma outra em preparação, com abertura prevista para 2019, pousa uma das obras mais intrigantes de Manuel Casimiro: "Estrutura de Frutos e Legumes" (1975). Uma malha ortogonal cujas interseções são ocupadas por tomates, batatas, pêras, laranjas e limões, estabelece uma rara relação entre espaço, matéria e tempo, três arquétipos que há muito se digladiam pelo topo do pódio da precedência filosófica. É porventura a sua obra mais assertiva sobre a insuficiência de uma visão estritamente monista do mundo. Uma espécie de prova sensível e mental de que a arte sempre esteve entre nós para demonstrar o erro crasso de qualquer monismo. O tempo, afinal, comanda a matéria. A Natureza, depois de morta, ainda apodrece, servindo de pasto a outras vidas.

Imiscuindo-se em tudo isto, aquele 'ovóide' — como lhe chama Manuel Casimiro — testemunha em toda a sua obra, não apenas uma marca de originalidade indelével, não apenas uma diferença semiótica congenial ao estruturalismo e à linguística que prosperou em França nas década de 50, 60 e 70 do século passado — influenciando os artistas do efémero movimento "Supports/ Surfaces" (Louis Cane, Marc Devade, Claude Viallat), e ainda mais os neo-minimalistas europeus do grupo BMPT (Daniel Buren, Olivier Mosset, Niele Toroni, Michel Parmentier) — mas sobretudo algo mais forte e antropológico, nascido sabe-se lá porquê e donde: a impressão 'casimiriana'. Um vislumbre a que Alfred Gell teria chamado, seguramente, 'index'.

O 'ovóide' de Manuel Casimiro anuncia, ao mesmo tempo, a presença de uma obra de arte e a presença do seu autor, independentemente da paisagem, 'abstração' ou 'ready-made' onde este entre. Em certo sentido, poderemos dizer que o mundo 'casimiriano' é o lugar onde a sua impressão digital, isto é, o 'ovóide', decide entrar. Frequentemente em obra alheia, que ganha novo autor por efeito da apropriação, mas também na obra própria que, por causa desta 'arqueofania' (Robin Mackay, 2014), acaba por se afastar também de Manuel Casimiro, ganhando a autonomia propulsionada pela força semiótica deste ovóide.

MANUEL CASIMIRO
Para além do olhar
11-30 maio, 2018, das 13h às 19h
Espaço Camões da Livraria Sá da Costa
Praça Luís de Camões, 22, 4º Andar, Lisboa

Curadoria: António Cerveira Pinto
Produção: Ocupart

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Joana 1, Serralves 0

Illustration by Paul Ryding for POLITICO

Uma artista síncrona com o seu tempo político e cultural


Joana Vasconcelos tem vindo a vencer a muralha de silêncio e piadinhas que erigiram contra ela. Desde que a conheço, não sei porquê, há uma elite indígena que detesta esta artista. Sempre vi nela uma profissional determinada, corajosa e comprometida com agendas ideológicas claras. Por exemplo, os direitos das mulheres, também nas artes. A antítese, portanto, dos artistas que pintam, fotografam e instalam por revista. Como artista prolífica que sempre foi, tem uma enorme produção. Peças como Sofá Aspirina (1997), Cama Valium (1998), o lustre construído com tampões de menstruação a que chamou A Noiva (2001-2005), a extraordinária Burka (2002) que vi ascender como Nossa Senhora ao teto do recém inaugurado MUSAC, e cair depois redonda no chão como uma puta apedrejada, Valquíria #1 (2004) e Pantelmina #3 (2004), Coração Independente Dourado (2004)—seguramente, uma das mais inteligentes, irónicas, e tocantes obras de arte produzidas na Europa na primeira década deste século—, a série Sapatos (2007-2010)—onde uma vez mais Gata Borralheira e Cindera dançam de forma sublime um sonho de mulher que a escritores como o pedinte literário António Lobo Antunes só pode mesmo distribuir socos—, e ainda a extraordinária Egéria (2018), da série Valquírias, expressamente pensada para o grande hall do Museu Guggenheim de Bilbau, entre outras, chegam e sobram para definir esta ainda jovem portuguesa nascida em Paris, como a mais importante artista do nosso país no primeiro quartel do século 21. Só falta saber porque carga de água, ou miopia de quem, o Museu de Serralves não viu o óbvio. Nunca dedicou uma exposição individual a Joana Vasconcelos, e a que no próximo mês de fevereiro irá ter lugar, depois de desalojar dois diretores da instituição (Suzanne Cotter e João Ribas), é o desfecho de um longo e silencioso combate que Joana venceu sem ruído e grande elegância. Mais grave ainda, o Museu de Serralves nunca lhe comprou uma obra de arte, até hoje. Agora, que tem menos dinheiro, e as obras de Joana Vasconcelos se cotizam sob a batuta de François-Henry Pinault, vai sair mais caro. Já agora, quantas obras comprou Serralves ao muito datado e nada original fotógrafo Robert Mapplethorpe? Quanto custou a centena e meia de aquisições da polémica exposição que ainda podemos espreitar neste museu portuense?

Joana Vasconcelos
THE VALKYRIE
Politico 
If you could reform one thing about the EU, what would it be?
“First I would change the fact that women don’t earn the same as men. I would make the human rights regarding women the first thing. Then I would change the politics toward immigrants.” 
Tell us something surprising about yourself.
“I’m an artist, but I could have been a karate teacher.” (She’s a 3 dan black belt.) 
What is the biggest loss the EU faces as a result of Brexit?
“The freedom of cultural speech and cultural movement. If we lose that we lose what makes us unique among the other continents.”

JOANA VASCONCELOS/JN: o Papa Francisco é atualmente a pessoa que mais admira e que poderia ter sido professora de Karaté, se não fosse artista. Acrescenta que gostaria de mudar os direitos dos imigrantes e das mulheres. E deixa uma declaração a propósito do Brexit: "Se perdermos a liberdade do discurso cultural, perdemos o que nos torna únicos entre os outros continentes." - Jornal de Notícias.