quarta-feira, 1 de julho de 2020

Sintomas da Terra Virtual



ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Hugo de Garis, um especialista em inteligência artificial, afirmou em tempos, numa entrevista à revista Wired, que dentro de oitenta a noventa anos teremos entre nós dispositivos computacionais da ordem dos 10E30 ou 10E40 componentes, contra os 10E10 neurónios do cérebro humano. Para ele, esta perspectiva de acumulação massiva de inteligência associada ao nascimento da chamada sociedade de informação dominará as políticas globais durante todo o século 21. Aquele cientista e visionário norte-americano crê mesmo que o progresso inevitável e exponencial da "engenharia evolucionária" provocará uma divisão dramática na opinião pública mundial. De um lado, os Cósmicos defenderão firmemente a hipótese de criação dos chamados "artilectos" — dispositivos de inteligência artifical extremamente avançados; do outro, os Terras agitarão o mundo contra o que considerarão uma ameaça catastrófica contra a espécie humana. Os Cósmicos, cansados de uma luta ideológica saturada de ruído, e conhecendo melhor do que ninguém as possibilidades efectivas de sobrevivência no sistema solar, poderão optar por deixar o nosso planeta. Mas os Terras, suspeitando da possibilidade de um regresso hostil da comunidade dos Cósmicos, seriam provavelmente levados a reagir contra este cenário, provocando uma guerra mundial contra a inteligência pós-humana e seus aliados. Acontece, porém, que os humanos de 2100 serão constrangidos a medir muito bem as consequências das suas decisões, na medida em que todos dependerão, em algum aspecto essencial das suas vidas, da inteligência artificial, da robótica, da engenharia genética ou da cirurgia robo-cibernética. Basta imaginar o que a defesa ecológica deste planeta exigirá às gerações futuras. A complexidade e interdependência das decisões políticas mundiais, nacionais e locais depende cada vez mais da informação e da capacidade computacional. É sobre esta espécie de novo determinismo que as sociedades humanas terão que saber encontrar o seu futuro como espécie.

O saber tem sido ao longo dos tempos o território reservado da magia e da religião, servindo para justificar a essência do poder, legitimar a economia, perpetuar as corporações, em suma, apetrechar os motores civilizacionais e culturais da História com as vantagens comparativas que ao longo dos tempos permitiram o chamado progresso material e ideológico da humanidade. A sua intrínseca imaterialidade faz desse saber um território virtual partilhado entre as elites e as castas que ao mesmo tempo comandam as sociedades e partilham entre si a riqueza material e o fruto da exploração humana. Se alguma diferença parece existir no presente, quando falamos, por exemplo, de territórios virtuais, o mais provável é que a mesma corresponda apenas a um processo de mutação dos grupos dominantes, pela intrusão de mais uma espécie de “bárbaros”, composta desta vez por uma mistura instável de classes médias e furavidas suburbanos dotados para a computação. A mundialização dos saberes através de redes computacionais planetárias democratiza o consumo, mas nem por isso diminui a tendência para a concentração capitalista. Muito pelo contrário, reforça-a a uma escala nunca imaginada. Não devemos pois esquecer, no entusiasmo futurista que nos acompanha desde o início do século 20, que o mundo virtual actualmente em plena explosão espacial e demográfica tem os seus donos de carne e osso e as suas propriedades privadas.

Seja como for, a Realidade Virtual está aí. Como está aí também a Internet. E ambas são poderosas, vieram para ficar, e são muito bem capazes de alterar comportamentos sociais e algumas geometrias do poder. Começou, por conseguinte, a corrida para a conquista de um novo e rico continente. Um continente que precisa de mapas. Como a cartografia do genoma humano, que deverá estar pronta antes do final deste século. A NASA, os satélites militares e os satélites meteorológicos descrevem com profundidade e pormenor crescentes o nosso planeta e a respectiva atmosfera. O mundo está a duplicar-se numa gigantesca base de dados “on-line”, onde toda a realidade se transforma em informação “on-demand”. Para nela navegar falta construir a respectiva cartografia digital. Uma aventura fantástica, um negócio de milhões e certamente tema para muitas e interessantes disputas territoriais.

O corpo humano, por sua vez, quer atrasar o relógio da vida. Se umas espécies duram mais do que outras é porque há uma causa, porventura reversível, para o envelhecimento. Creio que o motivo desta ansiedade, que os budistas há muito tentam apaziguar, é a inteligência. Ao contrário da matéria orgânica e dos átomos, a inteligência desenvolvida e alojada no corpo humano não envelhece com o tempo. Ou se envelhece, não envelhece por causas intrínsecas, mas externas: é o "hardware", e não o património de imagens, ideias e afectos que corre dentro de nós que se oxida e perde elasticidade. O olhar não envelhece e a consciência também não, porque além de guiarem o nosso corpo por este mundo, alimentam o nosso espírito, essa entidade metafísica há muito manipulada pelas religiões, mas que a ciência contemporânea começou a reinvindicar para a sua área de atenção e racionalidade. A nossa inteligência é uma máquina de calcular e um construtor de representações com a extraordinária capacidade de criar espelhos, a partir dos quais gera as teorias e aprende a exteriorizar-se replicando parcialmente o seu sistema operativo. Ou seja, há na inteligência uma inegável estratégia de imortalidade alojada desde tempos imemoriais na intimidade das nossas tensões religiosas.

25 de Abril de 1998

(Texto escrito para o catálogo do Pavilhão do Território, EXPO '98)

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