sábado, 22 de maio de 2021

Humanismo, anti-humanismo e pós-humano

ACP, Sem título, 2021

Teleologia


A propósito de Jean-François Lyotard e do seu L'inhumain/ Causeries sur le temps (1988).

O Cristianismo faz depender a emancipação última do ser humano (a sua salvação) da instauração na Terra do reino de Deus, condenando a humanidade caída em pecado a um eterno atrito material, social e moral. O Espírito do Renascimento, de que a pós-modernidade terá sido uma breve paragem introspetiva, abriu uma brecha no arcaico fatalismo mitológico ao estabelecer o conhecimento, a política e a liberdade como formas de escapar ao atavismo espacial das tribos, nações, e estados. O marxismo, ancorado na superstição teleológica do protestantismo e numa visão despótica da razão de estado, acabaria por dar lugar a uma visão cínica e nefasta da justa libertação humana das cadeias da desigualdade forjadas na exploração e na opressão dos mais fracos. Este regresso ao barbarismo religioso protestante perdura ainda, sobretudo sob o impulso do pós-estruturalismo francês saído do trauma da colaboração francesa com o nazismo, e mais recentemente, através de uma certa decadência cultural americana, expressa num pensamento 'politicamente correto' assimétrico e moralmente ambíguo. Os ventos dominantes de reparação moral das vítimas do colonialismo, das vítimas do racismo,  das vítimas do sexismo, da homofobia e da ancestral cultura patriarcal, por mais justos que sejam ou possam ser, não são o essencial da metamorfose em curso. A tecnociência, a ficção científica e a cibernética, mas também o regresso de uma filosofia orientada para os objetos e a persistência da arte (que ocupou sempre e sempre ocupará o lugar da incerteza cognitiva e verbal que dá lugar à instabilidade e transitoriedade próprias do conhecimento) são os verdadeiros motores de uma dupla descolagem dos cadáveres do determinismo. Da modernidade projetiva caminhamos agora em direção a uma pós-contemporaneidade programável, na qual o fundamentalismo das causas e dos amanhãs que cantam dão lugar a uma pragmática cultural humildemente oscilante entre o saber, a experiência, a política e a arte.

Capitalismo objetivo


Sem capital não há capitalismo nem socialismo, apenas sociedades estagnadas, violentas e falhadas.

Existem duas formas de acumular e concentrar a riqueza:
 
— explorar a força animal na fabricação de objetos, ideias e fantasias;
— desenvolver tecnologias capazes de superar as limitações físicas e biológicas do trabalho animal.

A substituição do trabalho animal por máquinas tem sido uma tendência constante da história humana. O que se ignora é qual será o resultado final desta tendência. Se todo o trabalho animal e humano, que pode ser explorado e transformado em lucro e capital, isto é, se toda a escravatura desaparecer, que acontecerá ao capital? Poder-se-à continuar a falar de lucro numa sociedade sem trabalho animal? As máquinas não têm elasticidade biológica, nem vontade própria, não têm qualquer relação simbiótica com a natureza biológica, nem se reproduzem como a vida — são capital fixo. Não podem, em suma, ser exploradas. Se, por outro lado, apenas uma percentagem ínfima da população humana assegurar no futuro toda a produção mundial, utilizando máquinas — mecânicas, eletrónicas, biológicas, macro, micro e nanoscópicas — para onde irá o fenomenal lucro obtido da exploração do trabalho dos vindouros super-obreiros manuais e intelectuais? Duas tendências atuais parecem responder a esta pergunta: a formação de uma classe de hiper-ricos, e a possibilidade de termos em breve um estado mundial dominando a ordem internacional. Haverá, por outro lado, lugar para a pergunta: porquê tantos humanos num planeta ameaçado pela sua pegada ecológica? Ao excesso de mónadas poderá pois impor-se, por necessidade lógica, a grande Mónada. Um Deus certamente indesejável por parte da humanidade excedentária.

O primeiro sinal deste pós-humanismo, da emergência de uma realidade pós-humana, ocorre já entre nós sob a forma da restrição ecológica visível nos constrangimentos descritos no ensaio de Garrett Hardin, "The Tragedy of the Commons". Há limites objetivos ao modelo de crescimento exponencial baseado no uso intensivo das energias fósseis. O fim do consumismo está à vista de todos, nomeadamente na mudança do perfil das classes médias, e na crescente complexidade tecnológica das sociedades.

Não confundir, porém, esta deriva pós-humana com o anti-humanismo de origem marxista-leninista antecedido pelo terror revolucionário de Robespierre, e mais tarde assente no existencialismo francês — traumatizado duplamente pelo anti-semitismo plasmado no caso Dreyfus e, mais tarde, pela vergonhosa capitulação francesa frente ao Blitzkrieg nazi. Não por acaso, Jean-François Lyotard, o único filósofo francês que entendeu a distinção entre a pós-modernidade e o anti humanismo messiânico de extração marxista e estalinista, parece ter-se eclipsado no recreio das universidades de esquerda.

Sublime


"Le sublime est peut-être le mode de la sensibilité artistique que caracterize la modernité" (1)

Sim, e corresponde também ao estado de espírito do indivíduo moderno, progressivamente despido de Deus. A fé em Cristo, neste Deus-homem, introduziu na Europa e na sua diáspora colonial, aquilo a que poderíamos chamar um privilégio humano, que coloca o homem ocidental acima do resto da vida e da realidade, protegido, em suma, pela ideologia da proximidade preferencial dos seres humanos à Ordem Universal, apenas conseguida por meio de uma comunhão única entre textos sagrados, racionalidade e sensibilidade. Esta arrogância religiosa colocou a humanidade e o seu planeta no centro do universo. Nesta cosmovisão, o não-humano estaria naturalmente subordinado à esfera dos servos privilegiados de Deus, isto é, à esfera humana. Mas esta, inspirada pelo Novo Testamento, viria a tomar paradoxalmente a árvore do conhecimento não como um método de acesso à verdade, mas antes como um caos de sombras cujo terror e vazio a empurram invariavelmente na direção da Fé. O saber não sancionado pelos livros sagrados interpretados pelas teologias dominantes tornar-se-ia facilmente uma heresia. E as heresias, não raramente, se pagaram com a vida de quem ousou procurar a verdade além do texto.

Este humanismo monoteísta, saído da decadência e colapso do império romano, que conduziu a Europa a uma nova ordem económica, social e ideológica com o seu centro irradiador de legitimidade política ancorado na Roma cristianizada, não resistiria, porém, à fricção dos novos 'conhecimentos de experiência feita' trazidos, primeiro, pelo método científico em gestação no Renascimento italiano, e segundo, pelas explorações marítimas iniciadas pelo portugueses nos finais do século XIV, início do século XV.

Estes dois vetores conduziriam o Ocidente ao regresso, por assim dizer, do panteísmo. Esta viagem de retorno ao futuro-anterior tardaria, porém, vários séculos a ganhar forma. 

O humanismo monoteísta (apostólico-romano) predominou sobretudo no Ocidente, até ao colapso a que hoje assistimos, mesmo nas suas variantes heréticas (luterana, calvinista e anglicana). A Reforma Protestante, e antes dela a visão crítica de Erasmus sobre a auto-suficiência paroquial, o autoritarismo e as dogmáticas, tanto dos arrogantes, corruptos e decadentes fariseus romanos, como dos novos paladinos da pré-destinação que tão bem viria a servir o espírito do Capitalismo, abririam fissuras irreparáveis desde então. No entanto, apesar desta ferida aberta, o "a priori" humanista manteve-se até hoje no Ocidente — apesar da energia convulsiva de todos os reformistas e revolucionários (John Wycliffe, Johannes Hus, Martinho Lutero, João Calvino, Thomas Müntzer, Marat, Robespierre, Karl Marx, Lenine, Trotsky); apesar do Iluminismo francês (Rousseau, Diderot, Montesquieu, Voltaire); apesar do Romantismo alemão; apesar do Positivismo inglês e de Charles Darwin; apesar do Socialismo Utópico e de Karl Marx; apesar da Psicanálise freudiana e de Jung; apesar do Neo-positivismo vienense, do Pragmatismo americano, da Teoria da Relatividade e da descoberta do ADN.

Nada melhor para o demonstrar que a luta feminista pela igualdade de direitos, contra o patriarcado e pela autonomia sexual; ou o acordar do pesadelo colonial; ou a emergência da alteridade de género, ou ainda a socialização do erotismo.

O pós-humano de que se fala, mais do que a emergência do inumano, ou do não humano enquanto democratização ontológica dos objetos no espaço-tempo, enquanto inércia, sensação, perceção e inscrição de múltiplos atores e interações, ou do que uma resignada humanidade protésica, parece ser, antes de mais, o culminar da viagem renascentista que poderá, ou não, abrir novas oportunidades para um humanismo desejável, no qual o indivíduo e as coletividades adquirem a liberdade de amar e conhecer sem ferir. Isto sim, será sublime!

E sim, a arte moderna moderna encontrou nas estratégias do sublime o modo ideal de suspensão das ideologias — incluindo as que impulsionam a ciência —, em nome de uma nova e necessária imersão holística na realidade.