terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ligar e religar


Figuras comunitárias (2)

Plataformas colaborativas e redes informais
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Há um livro cuja leitura recomendo a toda a gente antes de conversar sobre o futuro mais provável das sociedades humanas. Chama-se The End of Work, e foi escrito pelo economista Jeremy Rifkin, consultor de vários governos, entre os quais se conta o de José Sócrates. No essencial, este livro diz-nos que há um afastamento crescente entre o crescimento populacional e o número de pessoas necessárias a produzir tudo aquilo que consumimos e usamos. Ou seja, que a falta de emprego e o desemprego não só se tornaram variáveis estruturais e permanentes das sociedades tecnológicas globalizadas, como tende a aumentar em todo o mundo (China, Índia e Brasil incluídos) com consequências sociais potencialmente catastróficas, se entretanto as mesmas sociedades não souberem redesenhar os seus modos de vida.

Um das respostas possíveis a esta tendência estrutural da sociedade global é a criação de um rendimento social universal, isto é, garantir alimentação, abrigo e mobilidade a toda e qualquer pessoa do planeta, independentemente da sua idade, sexo, grau de instrução, ocupação e rendimento.

Outra das alternativas sugeridas passa pela criação de um vasto sector de economia social, baseado em redes colaborativas, locais e glocais, onde seja possível a troca directa de tempo por bens e serviços sem que tal implique necessariamente uma qualquer relação de exploração, ou acumulação capitalista (lucro)

Na realidade, estão já em marcha há alguns anos experiências sociais que envolvem formatos mais ou menos mitigados das duas alternativas mencionadas. Os regimes de voluntariado, os programas de responsabilidade social crescentemente adoptados pelas grandes empresas industriais e sobretudo financeiras, ou a criação local de moedas complementares, bancos de horas, instituições sociais de micro-crédito, clubes de trocas, etc. Falta, porém, uma teoria unificadora desta economia adaptativa em formação, sobretudo falta uma teoria construtiva capaz de lançar as bases universais de uma economia solidária tecnologicamente avançada e competitiva relativamente aos modelos falidos do Capitalismo especulativo, insensível e, em última análise, auto-destrutivo.

Os economistas tradicionais levaram demasiado tempo a perceber que o Capitalismo, insaciável na sua busca de mais-valias, acabaria por levar as sociedades ocidentais à beira do precipício económico, financeiro e sobretudo social. Só depois da queda estrondosa do Lehman Brothers, a maioria deles começou finalmente a duvidar da solidez do sistema financeiro ocidental. Em Portugal, o reconhecimento da crise, do estado lamentável da banca portuguesa, e sobretudo do gravíssimos problema do nosso endividamento público e privado, foi criminosamente tardio. Boa parte dos portugueses acabaria por ser apanhada totalmente desprevenida.

A situação actual, vista da perspectiva cultural, que é a minha, implica uma mudança profunda dos modelos de criação, produção, consumo e usufruto culturais. Implica, desde logo, que na reordenação radical que se impõe nas prioridades orçamentais do Estado, o sector cultural e criativo, ganhe claramente um outro protagonismo. A percentagem do Orçamento de Estado afecto à Cultura deveria subir imediatamente a 0,5% do PIB e caminhar na próxima década até aos 1%, obtendo boa parte das verbas necessárias a partir de uma racionalidade exigente noutros domínios orçamentais. Mas um tal incremento radical de meios não seria para manter o actual estado de coisas nos domínios cultural e religioso. Muito pelo contrário, a condição de aceitação social de uma aposta nova e radical nos sectores subjectivos da sociedade é a refundação dos seus próprios pressupostos e objectivos. E é aqui que a definição e estruturação das plataformas colaborativas e das redes informais tecnologicamente assistidas viria a fazer toda a diferença.

Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto


NOTAS
  1. Texto-base da apresentação no ciclo À Volta da Mesa Talks, no Museu Temporário / Galeria Luís Serpa, 16 novembro 2010.
  2. Jogos de arte ancestrais, praticados em família ou em comunidades mais alargadas. Neste caso, ilustrando um estudo sobre a sua importância educativa.
    The members of American Indian communities still participate in the making of string figures. They enjoy sharing them and learning new ones and they react with great interest to the hypothesis that this entertaining activity which has so long been a part of their culture may be related to the cognitive processes associated with mathematical thought.

    THE IMPLICATION OF STRING FIGURES FOR AMERICAN INDIAN MATHEMATICS EDUCATION
    Charles G. Moore
    in Journal of American Indian Education
    Volume 28 Number 1Figur
    October 1988
  3. A fim de contextualizar esta reflexão no campo das minhas indagações na matéria, transcrevo a ficha pessoal da apresentação feita na Culturgest em 2009 sobre a emergência e futuro das indústrias culturais e criativas à luz da recente iniciativa voluntarista da União Europeia a este propósito.
Fim do trabalho? Ou fim da tecnologia? 
Tudo começou pela observação da importância do conhecimento científico na evolução da espécie humana, e o duplo impacto que essa evolução tem causado à humanidade e ao asteróide que habita.

Questões como: a tecnologia enquanto vítima da exaustão dos recursos energéticos; o fim do trabalho humano como consequência da evolução das máquinas; e a emergência de uma arte cognitiva, que os sistemas pedagógicos tardam em assimilar, formam o núcleo das minhas investigações desde meados da década de 1990.

Mais recentemente, motivado pelo impacto global das transformações em marcha, comecei a associar a ideia de uma arte cognitiva à necessidade de uma nova arte socialmente responsável. — maio, 2009.

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