quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A expectativa do valor

Alberto Giacometti — L'homme qui marche - I
©Photo: EMMANUEL DUNAND/AFP/Getty Images
De onde vem o preço de uma obra de arte?
by ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
A life-size bronze sculpture of a man by Alberto Giacometti has been sold at auction in London for the world record price of £65,001,250.
It took just eight minutes for bidders to reach the hammer price after L'Homme Qui Marche I opened at £12m at Sotheby's auction house.
Sotheby's said it was the most expensive work ever sold at auction. (BBC News, 05-02-2010)
O leilão que teve lugar na Sotheby's londrina no dia 3 de Fevereiro de 2010, em plena crise mundial dos mercados financeiros, os quais assistiriam no dia seguinte a um afundamento global (1), por efeito dos temores causados pelos excessos de endividamento de pequenos-médios países como a Grécia, Portugal e Espanha (depois do que já se sabia da Islândia, da Irlanda e de vários outros países bálticos e do Leste europeu), não deixa de ser surpreendente. Quando centenas de milhar de empresas em todo o mundo fecham as suas portas, atirando para o desemprego milhões de pessoas, quando até se avolumam dia a dia as dúvidas sobre a capacidade de países como o Japão, Estados Unidos, Reino Unido, Islândia, Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha, e um longo etc., assumirem as suas dívidas soberanas, numa nocturna sala de leilões em Londres, L'Homme Qui Marche I, do escultor suíço Alberto Giacometti é arrebatado pela astronómica quantia de 74,1 milhões de euros. Nesse dia os mercados europeus, à excepção de Lisboa e Madrid, tinham fechado em ligeira alta. Mas na manhã seguinte, a fúria deflacionista da recessão mundial fez-se de novo ouvir!

O Capitalismo global tornou-se um imenso casino de apostas, onde a obtenção de ganhos fáceis cresce, nas cada vez mais complexas e sofisticadas plataformas electrónicas da especulação financeira, muito para além da riqueza real produzida no mundo. O que comanda os lances deste jogo infernal são as expectativas — expectativas do consumo, expectativas de sobre- exploração do trabalho, expectativas de investimento, expectativas de lucro fácil. Na base deste imenso jogo especulativo em torno da expectativa, o mundo Ocidental, ou antes o Capitalismo ocidental e tardio, produziu uma tecnosfera onde as pessoas envelhecem sem trabalho nem protecção, onde as máquinas inteligentes remetem o trabalho humano para um limbo de extinção a prazo, e onde a medida do crescimento é autofágica: quanto mais se consome, mais se investe, quanto mais se investe, mais se delapidam os recursos finitos à disposição e mais desperdício programado é induzido nesta caduca forma de economia.

Mas não é tudo! O mais extraordinário mesmo é o inimaginável nível de endividamento a que a Globalização capitalista conduziu as empresas, os governos e as pessoas. A economia que agora entrou em derrocada é uma economia do futuro convencionada, no sentido em que, ao longo dos últimos vinte anos, esta espécie de economia virtual tem vindo a inchar sobre uma enorme pirâmide Ponzi chamada precisamente mercado de futuros. A sustentabilidade fictícia deste futurismo financeiro assentou única e exclusivamente num sistema de segurança de créditos a que se deu o nome de derivados financeiros (ou Derivatives), mas que se viria a revelar, como confessou Warren Buffett, uma verdadeira Arma Financeira de Destruição Maciça ("financial weapons of mass destruction"). Numa economia global onde a especulação se foi sobrepondo rapidamente ao mundo da produção, este endividamento sistémico deu lugar ao aparecimento de um casino global orientado para a especulação desenfreada com os próprios mecanismos inicialmente engendrados como formas sofisticadas de segurar os riscos do endividamento! O resultado foi este: o mercado dos derivados financeiros tem hoje um valor nocional (2) de mais de 680 biliões de dólares, enquanto o PIB mundial não vai além dos 61 biliões (3). Ou seja, a pirâmide de contratos especulativos que supostamente seguram a economia mundial —o valor financeiro dos bancos, das empresas, dos fundos de pensões e investimento, das dívidas soberanas e do bem estar das famílias e dos indivíduos— traduz um potencial de risco de colapso financeiro dez vezes superior ao PIB do planeta (4). Se todos os contratos de derivados financeiros ruíssem em cascata (o que obviamente nunca sucederá) precisaríamos de mais de dez anos para reparar os estragos. No entanto, ainda que o colapso dos derivados financeiros seja parcial e gradual, o resultado de fundo será provavelmente o mesmo: 7, 10 ou 12 anos de vacas magras e muito sofrimento para centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.

Com foi possível então que uma esquálida figura humana fundida em bronze por um artista Contemporâneo europeu em 1961, que não chegou a satisfazer uma encomenda do senhor David Rockefeller para o conjunto de esculturas públicas da Chase Manhattan Plaza, acabasse por ser vendida a um comprador desconhecido na véspera de mais um afundamento grave das bolsas europeias e mundiais, por mais do dobro do custo inicialmente previsto da Casa da Música do Porto, ou por pouco menos do que o valor da escandalosa derrapagem dos custos de construção deste mesmo edifício assinado por Rem Koolhaas? As obras de arte parecem às vezes gozar de uma propriedade a que os guias mais antigos dos nossos museus chamam "valor incalculável"...

Mas que valor é este? De onde vem? Como pode subir até alturas tão vertiginosas? Deixaremos estas interrogações para um próximo escrito.

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NOTAS
  1. Bolsa de Lisboa afunda com PSI20 a cair 4,5%
    A bolsa de Lisboa seguia hoje, quinta-feira, em forte queda, com o principal índice, o PSI 20, a cair perto de 4,5 por cento. O sector da banca é o que está a ser mais penalizado.Depois de ter aberto em baixa de 0,23 por cento, o PSI 20 seguia às 09:51h a cair 3,59 por cento, com os receios sobre a degradação das contas públicas a reflectir-se no mercado bolsista.Cerca das 11:00h, o PSI 20 desvalorizou 4,49 por cento para 7.481,30 pontos, no pior desempenho desde Novembro de 2008.  — in JN online.

    World markets plunge on European debt fears

    Stock markets in Portugal, Spain and Greece led a sharp global retreat for the second day running Thursday as investors fretted over their governments' ability to get a grip on their borrowings. The euro plunged towards $1.37, hitting its lowest since May. — in Yahoo! News.

    Stock markets plunge over Europe debt fears

    European and American stock markets plunged yesterday as investors took fright over the difficulties in debt-ridden countries such as Greece and Portugal and fears mounted over the health of the world’s biggest economy.There were concerns that Greece may not meet its tough budget plans as workers started the first in a wave of strikes, prompting worries that Spain, Portugal and the Irish Republic may also struggle to cut their soaring debts. In a sign of the scale of the problems, a gauge of the perceived credit risk of Western European nations overtook that of the most stable US companies for the first time. (Times Online, 05-02-2010)
  2. Sobre os derivados financeiros ler este artigo da Wikipedia.
  3. Sobre o PIB mundial ler este artigo da Wikipedia.
  4. Sobre a crise financeira sistémica e suas consequências ler este artigo da Wikipedia.

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