quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Fábula com aparência de ensaio

Ada Lovelace com 20 anos (pormenor)

ANTÓNIO CERVEIRA PINTO


Introdução



Este artigo pretende mostrar como a evolução dos museus de arte se encontra num processo de integração cibernética com a nova galáxia do conhecimento que se expande no éter sub-atómico. Máquinas de Turing, servidores, bases de dados, redes neurais artificiais e redes sociais, autómatos e robots, realidade mista, gémeos digitais, inteligência artificial, computação quântica, entre outros fundamentos teóricos, estruturais e operativos da era pós-contemporânea, começaram no fim do século passado a tarefa benigna de absorver o mundo humano e os seus habitats, de que os museus de pedra e betão e as suas coleções fazem parte, num estado de pós-humanidade em que a sobrevivência do planeta e da maioria das suas espécies dependerá sobretudo da nossa capacidade de aceitar uma tragédia dos comuns regulada não apenas por Gaia, mas também pela nova Inteligência Universal a que os deuses tradicionais deram lugar. O museu será, finalmente, La Mariée mise à nue

O futuro dos museus passará, em minha opinião, por abraçar a galáxia de Marshall McLuhan.

Não é a reprodutibilidade técnica que remove a aura de uma imagem, mas a sua colonização pelo modo de produção capitalista. Só quando a realidade simbólica se rende ao princípio do prazer instantâneo que define o consumo conspícuo da mercadoria, é que a famosa aura—quer dizer, o mistério, a voz dos antepassados, os andaimes da aprendizagem e a presença indescritível do que não sabemos, mas sentimos e pressentimos—é atirada ao caixote do lixo das modas incessantemente reproduzidas pelo comércio omnipresente das coisas e suas representações desenhadas para morrerem cedo. A ideia difusa e frágil que rodeava os anjos morreu numa praia de especulação. Se alguma instância social pode ainda ajudar a humanidade a religar-se, reencontrando uso, saber e humildade na sua própria imaginação, essa instância, ao contrário do que preconizou Walter Benjamin, é e será a tecnologia.

The Smithsonian Collections Search Center is an online catalog containing most of Smithsonian major collections from our museums, archives, libraries, and research units. There are 13.5 million catalog records relating to areas for Art & Design, History & Culture, and Science & Technology with over 3.1 million images, videos, audio files, podcasts, blog posts and electronic journals. (1)

O homem evoluiu como um animal tecnológico. São as técnicas saídas da sua imaginação e não as representações culturais dos nossos fantasmas que permitiram a sobrevivência e o progresso da humanidade. As religiões e as filosofias, quando livres de fariseus e comércio, servem como crítica da certeza, remédio para a arrogância e banquete para conversas intermináveis. São, por assim dizer, o contraponto da nossa vitalidade, o deserto onde o tempo tece pequenos quintais de sabedoria.

Sem este preâmbulo seria mais difícil introduzir o tema deste artigo: as nossas próteses computacionais, a digitalização do mundo, e como tudo isto alterou a vida dos museus.

Afirmo que é o aparecimento da propriedade privada que força as comunidades humanas a desenvolverem a aritmética e a escrita, para assim poderem marcar, medir, avaliar e registar as suas casas e terras. Só assim foi possível assegurar, sob a forma de um arquivo fiável, a memória oral das confrontações dos terrenos e das transmissões de propriedade. Os historiadores surgiram, numa primeira existência sincrética, como escrivães, e mais tarde, como cronistas, tendo por missão fixar as memórias e guardar os documentos que explicam, justificam e legitimam a configuração do presente, das suas cidades e campos, dos seus atores e costumes, redes e poderes. Esta organização de memórias, para não ser contraditória, nem excessivamente ficcional, ou demasiado tendenciosa, teria que ancorar as suas descrições, narrativas e teses, em registos de nascimento, de casamento e óbitos, éditos, leis, sentenças, tratados, testamentos, papéis comerciais, razões contabilísticas e outros documentos; mas também na memória material disponível—lugares, caminhos, túmulos e monumentos, ruínas e achados, objetos quotidianos e simbólicos; e ainda na memória imaterial dos personagens, povos e civilizações estudadas— as suas vidas, tradições, linguagens e representações simbólicas. Os arquivos, bibliotecas e museus nasceriam, a pouco e pouco, de forma dispersa e acidentada, como guardiães desta memória coletiva (mas também das expansões imperiais e coloniais…) que ajudaram e ajudam a construir e preservar, acomodando como puderam e podem, a evolução ideológica e metodológica das filosofias da história. No século 20, porém, os museus foram chamados a desempenhar também funções de autenticação de autorias e de legitimação cultural de autores e obras de arte que entretanto circulam dentro e fora dos museus como mercadorias preciosas e objetos de especulação. A própria designação “museu de arte contemporânea” testemunha o anacronismo.

Fazer dos museus, arquivos e coleções de arte, acompanhados de catálogos, livros e revistas, fotografias, filmes, discos de vinil, bobines de fita magnética, suportes digitais diversos, e mais recentemente, domínios na Internet, levaram estas instituições a percorrerem três etapas de inovação ao longo de uma longa existência de quase 2500 anos: registos de entradas e saídas de obras, registos de compras, doações e depósitos, etiquetagem, catálogos e outras memórias em papel, acompanhados ou não de imagens; arquivos em microformas (microfichas e microfilmes), iniciados nos anos 20 do século passado; e desde 1993, o desenvolvimento de uma extensão desmaterializada dos próprios museus projetando a sua plena acessibilidade através de tecnologias cada vez mais sofisticadas de codificação, organização, representação e distribuição de informação, onde se incluem as próprias obras de arte que entretanto se tornaram compatíveis, migraram, ou nasceram nos novos universos tecnológicos de produção, recolha, transmissão e partilha de dados. Estamos perante um caso evidente de evolução tecnológica. Os museus que não puderem dispor dos meios, ou a quem forem negados os meios, para conseguir este salto quântico em direção aos novos ambientes de consumo colaborativo, acabarão por definhar penosamente no meio deste admirável mundo novo.

Arte e novas tecnologias, 1986


Em 1986, em colaboração com um arquiteto amigo da Corunha, convenci o município local a transformar uma estação de autocarros desativada num centro de arte e novas tecnologias. O ano 1987 (3) chegaria depressa, e com ele uma colorida revolução gráfica chamada Amiga 2000. A Internet pública estava ainda a sete anos de distância, e o Macintosh 128K era um recém nascido preto-e-branco com três anos de idade. Na realidade, a singularidade que iria mudar o mundo teve uma gestação prolongada. Mais importante do que o Maio de 68, em Paris, duas epifanias tecnológicas anteciparam o mundo em que hoje estamos embebidos:

—The Demo, uma conferência proferida por Douglas Engelbart, a 9 de dezembro de 1968, sobre a revolução informática mundial provocada pelo aparecimento dos “computadores pessoais”, cuja democratização esteve sobretudo ligada ao desenvolvimento de interfaces intuitivas de uso e interação, como o famoso rato que acompanha os teclados, os links, e os ambientes de navegação por ícones.

— às 22:30 do dia 29 de outubro do ano 1969, a primeira comunicação entre dois computadores distantes entre si: o SDS Sigma 7 host computer, situado na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), e o SRI SDS 940 host computer, situado no Stanford Research Institute (SRI). Através duma linha telefónica as máquinas comunicaram por breves momentos. A primeira mensagem a ser enviada pelo Interface Message Processor da UCLA deveria ter sido “log”, e a resposta do SRI, deveria ter sido “in” [LOG IN], mas o SDS Sigma 7 ‘crashou’, e apenas conseguiu transmitir duas letras: “lo”. Assim nasceu, com um congénito sentido de humor, a Internet: “lo” de low, ou de “hello”!

Na Europa as coisas andavam mais devagar. O Centro de Artes y Nuevas Tecnologías morreria no labirinto enigmático da política, dando sucessivamente lugar a dois museus de boa arquitetura, essencialmente orientados para o espetáculo empacotado do conhecimento.

Museu Virtual, 1995-97


Regressado a Lisboa, fundei em 1994 a Aula do Risco, focada no desenvolvimento de estratégias de criatividade. Desta lavra, e para o que importa ao tema deste artigo, saiu uma ideia que acabaria por produzir o primeiro CD-ROM interativo e generativo criado em Portugal. Chamou-se Museu Virtual, tendo sido desde o início imaginado como um projeto colaborativo, heurístico, iniciático, e prototípico, com o objetivo último de preparar o nosso meio artístico para a transição digital. Quando o Museu Virtual começou a ser concebido e programado, no outono de 1994, a Internet era ainda uma criança, lenta e com poucos adeptos. Daí a opção por um disco portátil preparado para PC com sistemas operativos Microsoft Windows. A recolha de dados, biográficos, fotográficos e audiovisuais da arte portuguesa da segunda metade do século 20 constituiu uma das tarefas principais do programa de trabalho. Mas duas outras fizeram, com igual importância, parte do CD-ROM: a proposta de construção de um parque de arte e tecnologia, e a programação dum mundo virtual habitável, apto para a interação com obras de arte generativa, suportado numa base de dados, e apoiado por um laboratório de investigação e desenvolvimento. O apoio da assembleia municipal de Montemor-o-Novo a este projeto, e obviamente do então presidente da câmara, Carlos Pinto de Sá, fez chegar esta ideia à CCR do Alentejo, onde viria a morrer por causas político-partidárias. Convém lembrar aqui que o famoso mundo virtual, Second Life, só seria publicamente lançado em 2003.

Esta fraca visão estratégica acabaria por empurrar o esforço dos investimentos públicos para a chamada arte contemporânea (um conceito validamente posto em causa por Lyotard), dando por aqui lugar à promoção imobiliária de museus insustentáveis, e coleções instantâneas rapidamente obsoletas. A concomitante desvalorização do impacto das novas tecnologias na criação artística, na constituição e organização de acervos, e sobretudo no desenvolvimento de novos públicos, colocaria a Europa, à exceção talvez da Alemanha e da Holanda, numa posição pouco competitiva face aos grandes inovadores americanos. A cultura pós-contemporânea, que também pode ser vista como uma forma de eternidade, é formada por atores-rede (Callon, Latour, Akrich), autores-máquina e consumidores colaborativos. Existe, pois, uma nova ecologia cultural, global, a que os velhos museus de arte contemporânea e as velhas escolas de arte terão forçosamente que se adaptar.

A segunda cidade, 2016


Os videos da chamada arte vídeo são "new media"? A minha resposta é a mesma desde 1994: não, a designação "new media art" remete para o domínio das novas tecnologias de computação e correspondentes linguagens informáticas; para o paradigma da desmaterialização digital; e para o mundo online. Remete ainda para uma praxis artística tecnologicamente forte, estimulada por aproximações desconstrutivistas ao protótipo artístico (Gell), através de estratégias do tipo “data mining”, “bending”, “glitch”, “reengineering”, “retrofitting” e “post-Internet”. A arte nascida em computador, ou deste criticamente dependente, é uma arte nova, que ambiciona passar o Teste de Turing. A new media art é a maneira como os objetos de arte emergem de uma tecnosfera produzida e habitada por ciborgues e atores-rede.

Quando o número de obras de arte pós-contemporânea ultrapassar o número de obras de arte moderna e contemporânea, qual será o lugar da new media art na maioria dos museus que conhecemos?

Imaginemos, por um momento, uma segunda cidade em cada cidade. Uma cidade de dados que se abre à nossa curiosidade, crescendo organicamente com a cidade de pedra e cal. Esquinas que recitam Pessoa, bancos de jardim que conversam connosco, relvados que impedem a sobrepopulação de pombos e cães, árvores que cantam, etc. Estas computações criativas são o território natural dos artistas. No entanto, como estamos a falar já não de obras imateriais dispersas pela cidade, mas de lugares onde as artes vão ter com cada um, o grau de complexidade torna a tarefa de qualquer conservador de museu um desafio que, não sendo impossível, requer, recursos distintos daqueles que hoje fazem parte das metodologias, conhecimentos e meios materiais ao dispor da museologia estabelecida. Os museus tenderão, pois, mais cedo ou mais tarde, para uma ciber-museologia.

Museus quânticos?


A era pós-digital, ou hiper-digital, vem aí. Até ao momento, as máquinas conheceram apenas dois estados físicos (On/Off), e os computadores, dois estados lógicos (0/1). Nos processadores de 8 bits, cada byte  é formado por 8 bits, mas à medida que a velocidade eletrónica dos mesmos (ciclos por segundo) aumentava exponencialmente, os computadores passaram a operar sobre sequências digitais mais compridas, de 32 bits, e 64 bits. Quanto mais rápidas forem as operações, e mais dados forem transportados, melhor a qualidade dos gráficos, dos sons, dos vídeos, bem como das comunicações no interior das máquinas, entre máquinas, entre pessoas e máquinas, entre pessoas-máquinas, e entre atores-redes. A progressão e a expansão desta nova condição de ciborgue tem sido extraordinária. Não só as redes 5G irão em breve permitir o processamento de quantidades astronómicas de dados, melhorando a qualidade das nossas comunicações online e dos nossos mundos virtuais, como o aparecimento da computação quântica quebrará a lógica binária do sim ou não. Uma porta pode estar aberta ou fechada, mas também aberta e fechada ao mesmo tempo, tal como o hipotético Gato de Schrödinger é um vivo-morto enquanto não satisfizermos a nossa curiosidade! A chegada desta nova singularidade computacional vai ter enormes consequências sobre a criação, a produção e o consumo culturais, e portanto sobre os museus que no futuro irão acomodar esta evolução da realidade.

KiBA—Knowledge-intensive Based Art


A arte continuará a ser uma manifestação da subjetividade concreta, como um dia a definiu um físico português chamado Egídio Namorado. Aquele momento em que a voz do poeta emite sons estranhos e dissonantes, palavras que rimam, ideias paradoxais, movendo-se em transe no meio da tribo que o escuta e observa em silêncio, será sempre distinto das linguagens de comunicação, da gnoseologia dos filósofos, da lógica dos matemáticos, ou das leis do universo procuradas com resiliência e método pelos cientistas. No entanto, à medida que o conhecimento se expande e democratiza, e as linguagens e tecnologias do nosso quotidiano florescem e se tornam mais sofisticadas, não posso deixar de pensar no incremento cognitivo das artes—como se o conhecimento fosse mais uma paisagem, mais uma experiência. Os índices e os protótipos designados por Alfred Gell na sua visão antropológica da arte, como antes os estudos meticulosos de Andre Leroi-Gouhran sobre arte enquanto expressão subjetiva do crescimento cognitivo-motor da espécie humana, apontam nesta direção.


Notas


  1. Smithsonian Collections Search Center
    LINK http://collections.si.edu/search/about.htm
  2. BOB DUGGAN, “Is the Future of Museums Really Online?” (27 January 2015)
    “Technology is a great enabler of arts creation and participation. In 2012, nearly three-quarters of American adults — about 167 million people — used electronic media to view or listen to art, and large proportions of adults used electronic media to create music or visual art.”
    LINK https://bigthink.com/Picture-This/is-the-future-of-museums-really-online
  3. Este artigo foi encomendado e originalmente publicado na Revista de Museus #02RM, lançada a 13 de novembro de 2019. Por falha minha, na referida Revista, no capítulo Arte e novas tecnologias, 1986, onde se lê: “O ano 2007 chegaria depressa”, deve ler-se: O ano 1987 chegaria depressa.


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