domingo, 17 de março de 2019

Leonor Antunes, Graça Fonseca e a Bienal de Veneza

O populismo é um fruto podre do maniqueísmo identitário


Cuidado com a hipocrisia das esquerdas, e com a misandria!


Este comentário à polémica suscitada pelas afirmações da artista Leonor Antunes, cuja participação na Bienal de Veneza, como representante do país chamado Portugal, saúdo, foi suscitado por um escrito sibilino de Eduardo Pitta no Facebook sobre este mesmo assunto.

Transcrição

INSCRIÇÃO — Numa altura em que, acerca do estado do mundo, em geral, e da situação política portuguesa em especial, ninguém sabe o que pensam os artistas, os escritores e os intelectuais portugueses com visibilidade mediática, este statement de Leonor Antunes, a artista plástica escolhida para representar Portugal na Bienal de Veneza deste ano, é eloquente: 
«A situação no mundo é bastante triste, com países que se estão a tornar regimes fascistas e populistas. Se tivéssemos um regime diferente, de direita, eu nunca teria aceitado o convite. [...] A situação que vivemos é muito grave. Vivo em Berlim, o governo não é assim tão desinteressante, mas a extrema-direita está no parlamento e era uma voz até há muito pouco tempo proibida, digamos. Sou uma estrangeira que vive em Berlim e não são esses os valores que quero dar à minha filha. Se estivesse o PSD ou o CDS no governo, eu não aceitaria. Embora sejam partidos democráticos, defendem valores em que não acredito.» 
Leonor Antunes está muito acima do patamar partidário, não havia necessidade, mas a frontalidade (a inscrição) é de louvar. 
Passou-se isto durante a conferência de imprensa em que foi anunciada a sua escolha entre dezasseis artistas a concurso, doze homens e quatro mulheres, escolha feita por um júri constituído por Cristina Góis Amorim, Nuno Moura, Catarina Rosendo, Jürgen Bock e Sérgio Mah. 
A Direita já começou a dar pinotes. Nuno Melo exige a sua cabeça: «Tem que ser substituída.» Nonsense. Barreto Xavier esperneou. 
Leonor Antunes tem 47 anos, vive em Berlim desde 2005, e obras suas fazem parte das colecções de museus importantes em vários países: Reino Unido, Alemanha, França, Espanha, Brasil, México e Estados Unidos. Em Portugal pode ser vista na Gulbenkian e em Serralves. 
O trabalho que vai apresentar em Veneza, «Uma costura, uma superfície, uma dobradiça e um nó», será exposto no Palazzo Giustinian Lolin, exposição comissariada por João Ribas, antigo director artístico de Serralves. (1)

Quem é Leonor Antunes?

“Leonor Antunes é uma artista plástica de origem portuguesa [sublinhado meu] radicada em Berlim desde 2005.” (2)
“Leonor Antunes (Lisboa, Portugal, de 1972) es una escultora portuguesa que reinterpreta en sus esculturas el diseño de objetos, detalles arquitectónicos y obras de arte moderno.” (3)

Renunciou Leonor à nacionalidade portuguesa? Era bom esclarecer esta dúvida e acertar as versões publicadas na Wikipédia e noutras publicações (como, por exemplo, as tabelas da Coleção Daimler).

Pedro Cabrita Reis. Estátua do Doutor José Vieira de Carvalho, Presidente da Câmara da Maia, 2003.
Foto: CMMaia

Outras incongruências

“In 1944, almost half of Daimler Benz’s 63,610 Daimler Benz employees were civilian forced labourers, prisoners of war or concentration camp detainees.” (4)
Em 1999 convidei Leonor Antunes para participar na Bienal da Maia. Aceitou e participou, muito bem. O edil da Maia, à época, era um notório político de direita: José Vieira de Carvalho. Esta espécie de pater familias fora deputado à Assembleia Nacional no tempo de Marcello Caetano. Esteve depois preso, às ordens do Comandante da Região Militar Norte, entre 11 de março e 25 de novembro de 1975, acusado de ser um dos ativistas (de extrema direita, claro) do ELP /Exército de Libertação de Portugal. Já em plena liberdade e gozando de todos os seus direitos, foi eleito em 1979 presidente da câmara municipal da Maia, onde permaneceria até morrer, em 2002. Pedro Cabrita Reis erigiu-lhe uma estátua!

Admito que à época Leonor Antunes não estivesse tão politizada como hoje. Afinal, ainda não emigrara para Berlim. Mas foi na Alemanha que a sua obra entrou na Coleção Daimler, sediada em Estugarda, sucessivamente em 2008 e 2014 [Wikipédia e art.daimler.com]. Não lhe suscitou então—pergunto— nenhuma dúvida moral entrar na coleção de arte de um gigante industrial cuja deplorável colaboração com o regime hitleriano é bem conhecida, já para não invocar a sua tremenda pegada ecológica?

Leonor Antunes. Balfron tower (uncertainty and delight in the unknown), 2007
brass screen, brass lamp, wall sculpture (brass, electric thread), floor work
Curtain: 168 x 268 x 1 cm; wall object: 193 x 290 x 2 cm; lamp: 65 x 65 x 20 cm
Acquired in 2008
Daimler Art Collection


Ou ainda, parecerá bem a Leonor Antunes as suas colaborações com o Museu de Serralves, sendo esta instituição pública resultado de uma ideia posta no terreno pela social-democrata Patrícia Gouveia enquanto secretária de estado de Aníbal Cavaco Silva—um governo de direita, como hoje se diz, e à semelhança do que o PCP sempre disse—, e que tem hoje à frente do seu conselho de administração e comissão executiva uma presidente oriunda do setor financeiro, um representante do BPI, principal mecenas privado da instituição, e uma ex-ministra da cultura, socialista—ou seja, o Bloco Central a que o regime nos habituou desde 1983?

Leonor Antunes critica o que afirma serem duas tristes realidades: a deriva populista europeia e o paternalismo da arte contemporânea. Estou de acordo, em geral, com estas duas críticas.

No entanto, convém sublinhar que os fenómenos populistas de extrema direita não têm, nem de longe nem de perto, em Portugal, a expressão urbana, ideológica e institucional que adquiriram na Alemanha, onde a Leonor vive e trabalha desde 2005. Por outro lado, o domínio do sexo masculino nas artes visuais contemporâneas no nosso país é mais superficial do que parece. Basta começar a contar as mais prestigiadas artistas portuguesas desde a segunda metade do século 20 para cá: Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Salette Tavares, Ana Hatherly, Ana Vieira, Helena Almeida, Menez, Lourdes Castro, Ana Jotta, Joana Vasconcelos, Filipa César, Ângela Ferreira, Susanne Themlitz, Leonor Antunes, Salomé Lamas, etc. As obras de Vieira da Silva, de Paula Rego e de Joana Vasconcelos são aliás as mais internacionais e as comercialmente mais valiosas de toda a arte portuguesa do século 20. Nenhum outro artista português do sexo masculino se aproxima sequer destes três nomes, quer no preço das obras, quer na popularidade.

Pedro Cabrita Reis, sempre atento às suas quintas, e ao ar que se respira nos corredores do estado e do dinheiro, inaugura no dia 21 de março, na Fundação Arpad Szénes – Vieira da Silva, uma exposição só com mulheres, intitulada candidamente “A metade do céu” (5). Não consta que a mesma tenha sido objeto de qualquer desconstrução feminista até à data. Todas, exceto Ana Vieira e outras artistas que já faleceram, responderam afirmativamente à chamada do simpático cabotino. (5)

No papel de curador, em 1999, para a Bienal da Maia, comecei por convidar Pedro Gadanho e Catarina Rosendo para me ajudarem no projeto. Do resultado desta colaboração, o número de participações do sexo feminino não confirma, antes contradiz, a preocupação da atual ministra da cultura com “a invisibilidade das mulheres artistas” (6).

Bienal das Maia, 1999 (artistas com nomes femininos)

Alice Geirinhas
Ana Pinto
Ana Quintans
Berta Ehrlich
Catarina Alves Costa
Catarina Campino
Catarina Leitão
Catarina Mourão
Catarina Simões
Cecília Delgado
Dores Queirós
Eva Mota
Fernanda Pereira
Filipa César
Gabriela Vaz
Helena Lopes
Inês Pais
Joana Pimentel
Joana Vasconcelos
Joana Villavede
Leonor Antunes
Lúcia Alves
Luciana Fina
Margarida Correia
Marina Reker
Paula Guerra
Rita Nunes
Sara Anahori
Shi Yong
Susana Pomba
Susanne Themlitz

É certo que a proporção de género terá andado à volta de uma participante com nome feminino por cada três artistas com nome masculino. Acontece, no entanto, que impor paridades de género neste domínio teria sido e será sempre uma forma de prepotência ideológica. Em primeiro lugar, porque não há apenas dois sexos mas, pelo menos, uma dezena. Para além dos machos e fêmeas, contam-se hoje mais oito variantes de género: LGBTQIAP+

Estabelecer uma proporcionalidade de género, por exemplo na participação portuguesa na Bienal de Veneza, para além do problema prévio de saber quem é português, implicaria mapear, pelo menos, dez géneros, a correspondente proporcionalidade, e só depois dar a palavra ao comissário!

Não devemos, em suma, transformar as questões de género numa guerra identitária por migalhas, ou por arcas recheadas de poder e dinheiro. Cada macaco no seu galho. A qualidade da arte dirime-se em espaço e tempo próprios. A história e a antropolgia da arte necessitam, aliás, de muito tempo para construirem os seus consensos.

Leonor Antunes é uma escolha justa para a representação portuguesa na Bienal de Veneza, apesar do impacto polémico das suas declarações de princípio, e sabendo nós que os presentes e futuros colecionadores das esculturas de Leonor Antunes são e serão muito provavelmente piratas, especuladores e exploradores situados na banda direita do espetro político, não representando mais de 0,1% da população portuguesa, alemã, europeia, ou mundial.


NOTAS

  1. Eduardo Pitta (in Facebook)
  2. Wikipédia. Esta página foi editada pela última vez às 10h29min de 17 de março de 2019.
  3. Wikipédia. Esta página se editó por última vez el 19 mar 2018 a las 21:01; primeira edição: 19.11.2016
  4. Company History. Daimler-Benz in the Nazi Era (1933 - 1945)
  5. Armanda Duarte, Aurélia de Sousa, Catarina Leitão, Cecília Costa, Clara Menéres, Cristina Ataíde, Cristina Mateus, Fátima Mendonça, Fernanda Fragateiro, Filipa César, Gabriela Albergaria, Graça Costa Cabral, Graça Morais, Graça Pereira Coutinho, Helena Almeida, Inês Botelho, Joana Bastos, Joana Rosa, Joana Vasconcelos, Josefa de Óbidos, Júlia Ventura, Leonor Antunes, Lourdes Castro, Luísa Correia Pereira, Luísa Cunha, Mafalda Santos, Maria Helena Vieira da Silva, Maria José Aguiar, Maria José Oliveira, Marta Soares, Menez, Patrícia Garrido, Paula Rego, Raquel Feliciano, Rita GT, Rosa Carvalho, Salette Tavares, Salomé Lamas, Sandra Baía, Sara (& André), Sara Bichão, Sarah Affonso, Sílvia Hestnes Ferreira, Sofia Areal, Susana Anágua, Susana Mendes Silva, Susanne Themlitz, Tânia Simões, Teresa Segurado Pavão, Túlia Saldanha, Vanda Madureira.
  6. Com Leonor Antunes a caminho de Veneza, ministra da Cultura quer combater “a invisibilidade das mulheres artistas”, Público.

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