sexta-feira, 13 de junho de 2014

Denis Hickel: hoje pertenço aqui

Dia das crianças na Quinta do Alecrim.
Foto Denis Hickel


Esta crise só tem saída se mudarmos os paradigmas básicos

por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Quinta do Alecrim (Facebook) – Uma ecoliteracia de transição. Um arquiteto, Denis Hickel e uma jornalista, Juli Moojen, trocam Lisboa por um vale agrícola em Torres Novas, que serve de laboratório a uma tese de doutoramento sobre ecologia e design. E depois? Fomos conversar com Denis, e o resultado aqui está.


António Cerveira Pinto
— Que faz um arquiteto brasileiro perdido na Quinta do Alecrim, algures na região de Torres Novas?

Denis Hickel — O que começou entre um misto de casualidade e como um processo de transição revelou-se um campo rico em experiências e fértil de possibilidades. Começou pela vontade de tentar entender determinadas dinâmicas de vida mais próximas das dinâmicas dos ecossistemas... o que custa produzir o próprio alimento, a casa em que vivemos, etc.

O que um dia era só um terreno com horta virou um projecto de vida. O que faço hoje? Vivo no campo e tento entender viver da terra e das dinâmicas deste lugar. Dedico-me à apicultura e também a ativar plataformas locais para co-criar novas formas de viver, aprender, prosperar. Enfim, tem sido um processo muito, muito rico. 


ACP
— Que ensinamentos a vida no campo tem aportado à tua formação de arquiteto e designer, e às tuas ideias sobre sustentabilidade e futuro da humanidade?

DH — Numa palavra: simplicidade.

Me vejo mais como designer, no sentido mais amplo da palavra, como aquele que trabalha o tempo todo prospectando possibilidades de quaisquer factos, ou projeção sobre o futuro. Seja de uma habitação, ou de sistemas complexos que são as atividades humanas. Confesso que tenho andado mais interessado em trabalhar como um facilitador em estabelecer redes onde as pessoas possam fazer e aprender juntos, com objetivos comuns e diante de determinados desafios (influências do processo de investigação da minha tese.)

A vida no campo aportou novas formas de ver, fazer e pensar a nossa existência, novos valores e um sentimento de como precisamos reaprender, reestruturar e relocalizar o nosso viver dentro de determinados limites de entendimento, onde possamos perceber os impactos das coisas mais básicas da nossa forma de viver — do alimento ao trabalho e à satisfação pessoal.

Fundamentalmente, ao perceber que poderia realizar uma satisfação plena a partir de um modo de viver que é tão simples e a partir de atividades tão frugais quanto cultivar alimentos, ou manter abelhas, eu aprendi a dizer NÃO! Não a determinadas relações de trabalho, às agendas escondidas, às intenções com as quais não concordo. Enfim, todas àquelas coisas que geram stress e dão cabo da nossa saúde no dia-a-dia e que nem nos apercebemos enquanto vivemos dentro da lógica da competição, do individualismo e da sobrevivência.

Sobre o futuro da humanidade... depende de cada um de nós. Poderemos ter um futuro negro, ou um futuro iluminado... No que diz respeito à sustentabilidade (não gosto nada desta palavra), enquanto sociedade ainda não questionamos o que queremos sustentar em primeiro lugar. Será o status quo e um determinado padrão cultural de bem estar material que já não é mais possível diante de uma monocultura globalizada? Ou queremos proteger e sustentar as dinâmicas que fazem possível a nossa vida na terra?

Bem, neste último caso estou de acordo com David Orr, que diz que diante da presente crise precisamos construir uma literacia ecológica, isto é, conhecer as dinâmicas dos sistemas vivos e viver de acordo. Acho isso brutal, pois é relativamente fácil chegar a um entendimento literal disso... mas o “viver de acordo” coloca a fasquia do desafio muito mais alta... ;)


ACP — Até que ponto corresponde à verdade a ideia urbana de que há um movimento de urbanitas instruídos em direção ao campo? Já ultrapassou o estigma hippy, religioso ou catastrofista que nos leva frequentemente a olhar para estes regressos à terra como acessos românticos temporários?

DH — Não acho que este movimento seja tão intenso e tão forte como deveria ser. O interessante é que parte destas pessoas são indivíduos que ficam, e não indivíduos que estão a instalar-se nesta região pela primeira vez. Há uma onda e um clima favoráveis às transições. Mas há muita coisa superficial e da moda passageira também.

Bolas... são muitos preconceitos numa só pergunta! (risos)

Primeiro, muitos daqueles Hippies dos anos sessenta fizeram o mesmo que muitos de nós estão fazendo hoje... Se para alguns era uma questão de estilo, ou de moda, para outros foi algo mais profundo. A questão é que muita desta gente hoje é responsável por muita da literatura que está a alertar para os desafios deste século e mais importante, são também os responsáveis por ecovilas, comunidades sustentáveis, etc. Que são hoje objectos de estudo e referência para muitas políticas e estratégias para a sustentabilidade: Tamera, Findhorn, Sieben Linden, o IPEC no Brasil e assim por diante. Também desta geração temos a Donella Meadows, por exemplo, que fez parte daquela equipa que lançou um dos primeiros e mais importantes trabalhos a chamar atenção para a questão da insustentabilidade da nossa civilização: Limits to Growth, do Clube de Roma. E se formos rever as edições mais recentes deste estudo, que na altura foi desprezado pelo movimentos pró-crescimento e mesmo pela comunidade académica, veremos que as suas “predições” não se desviam muito do momento que estamos vivendo.

Depois, eu acho que àquilo que estamos a chamar de “desenvolvimento sustentável” nada mais é do que uma tentativa de conservar o status quo e um modelo de bem-estar baseado no crescimento material e tecnológico. Isto teria sido possível se tivéssemos ouvido os hippies :) Sem querer soar catastrófico, crescimento/desenvolvimento sustentável já não é mais possível.

Eu acredito que estamos entrando na curva descendente desta civilização, e a partir daí algo novo vai surgir. A questão é que já estamos neste caminho há pelo menos 40 anos e os impactos negativos desta civilização nos ecossistemas são crescentes e incríveis e não deverão reduzir nas próximas décadas. Portanto eu acho que esta transição não vai ser nada suave. Basta olhar à volta e ver a emergência do pico do petróleo, as alterações climáticas em curso, os refugiados da fome e das guerras provocadas pelas disputas por recursos estratégicos e que fomentamos através do consumo diverso, intensivo e inconsciente.

Mas esta visão não diz nada às pessoas por uma questão muito simples: está fora do seu escopo de entendimento.

As pessoas só vão agir quando sentirem na pele os efeitos: quando faltar combustível e alimentos, ou quando os preços estiverem insuportáveis, etc. Isto deverá promover uma re-localização urgente e desordenada das nossa vidas. Portanto, é necessário refletir quanto antes sobre o momento de agir  (ou tão brevemente quanto for possível). Neste sentido a crise pela qual atravessa o país e, em maior ou menor extensão, o próprio território Europeu, torna o momento fértil para movimentos de questionamento e transição de base. Se esperarmos pelas grandes cúpulas globais estaremos lixados.

Também não vejo este movimento como uma volta a algum passado de proximidade narcisista com a natureza, até por que a vida segue para frente e não para trás. Tá certo que tem muita gente que vê na minha experiência e da minha família uma fantasia, uma vida onírica no campo. No entanto, pagamos o preço das nossas escolhas e das nossas prioridades, e não tem nada de romântico nisso. É bom, mas não é romântico, é real. Tem um preço a pagar.

De qualquer forma temos que estabelecer um entendimento comum: a crise convergente em que vivemos — da economia, da sociedade, da natureza — é uma crise da separação. Nós separamos o mundo humano do mundo natural, o indivíduo do coletivo, a comunidade do lugar e o aprender do viver. A outra coisa que temos que reconhecer é que somos seres vivos, participantes e interdependentes das dinâmicas dos ecossistemas. A saúde humana, nos seus aspetos mais amplos, depende de ecossistemas saudáveis. Nós não estamos dando cabo do planeta. Se entrarmos em extinção, o planeta vai continuar onde está. Nós estamos sim é minando as condições sensíveis que fazem possível a vida humana no planeta — ou no mínimo, desta civilização: tão duro, simples e directo quanto isso.

E eu não vejo outra forma de aprender isto senão pela aproximação com aquilo que estou aqui a chamar de dinâmicas dos ecossistemas. Que é o mundo natural do qual nos separamos. Quem sabe o impacto somatório das suas decisões na saúde dos ecossistemas? Quem sabe o que causam os alimentos transgénicos, seus impactos ambientais e sociais? Quem sabe se não iremos presenciar uma extinção em massa? E quem sabe que, dentre as espécies ameaçadas, está a abelha melífera que, junto com outros insectos, é responsável pela polinização de cerca de 70% da alimentação humana? E quem sabe que todos estes problemas emergentes estão interligados?

Por outro lado, diante desta crise, há uma possibilidade muito boa de criarmos condições para uma vida mais plena. Mas vai depender da coragem de cada um de nós em se deixar ir. Em transmutar, desfazer identidades e deixar algo novo nascer. 


ACP - Vais regressar a Lisboa, onde viveste e trabalhaste vários anos, depois de apresentares a tua tese de doutoramento?

DH — Não, nem pensar. Lisboa só a passeio. Já não acredito na vida nas grandes cidades. Cada vez mais, para termos acesso às coisas boas que as cidades têm para oferecer temos que pagar um preço muito alto. A vida nas grandes cidades gira à volta do consumo. E diante das emergências energéticas, ambientais e sociais, eu acredito que as grandes cidades entrarão em declínio. Terão necessariamente que se fragmentar para alimentar e abrigar às pessoas. Uma parte destas pessoas terá que partir simplesmente. Veja o que está a acontecer nos Estados Unidos, seus subúrbios, e a bancarrota total da cidade de Detroit!

A minha tese de doutoramento foi um processo de aprendizagem gigantesco. É um exemplo típico de como temos que aproveitar o caminho, o processo. O título académico não serve para nada na atual conjuntura e as universidades estão cada vez mais distantes das situações onde os problemas emergem e podem ser resolvidos. Produzem um saber deslocado. Estão atreladas a lógicas hierárquicas, políticas, burocráticas e formais completamente ultrapassadas e elitistas. Não vejo mudança a curto prazo no horizonte.

Aqui em Torres Novas, eu encontrei pessoas, conheci novas realidades, e um mundo de possibilidades abriu-se a minha frente. Vou continuar aqui a investir no processo de aprendizagem dentro da nossa quinta, nas abelhas e também nas dinâmicas sócio-culturais que tornam tão agradável a vida nas pequenas e médias cidades. Vou dedicar-me à dinamização desta região do país. A vida no interior de Portugal é simplesmente deliciosa e há muitas pessoas capazes de fazer deste um bom lugar. Pessoas que em toda a sua simplicidade fazem muito mais pelo bem-estar das sua comunidades do que as nossas instituições bolorentas. Isto porque têm a sua sabedoria assente no lugar a que pertencem. E hoje, eu pertenço aqui.


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