domingo, 14 de fevereiro de 2010

Caverna comun

Contas de contar, contas de arte


por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
 
Lebombo Bone (ou Osso do Lubombo - ca. 35 000 anos (1)
“La monnaie, – quelle que soit la définition qu’on adopte – c’est une valeur étalon, c’est aussi une valeur d’usage qui n’est pas fungible, qui est permanente, transmissible, qui peut être l’objet de transactions et d’usages sans être détériorée, mais qui peut être le moyen de se procurer d’autres valeurs fungibles, transitoires, des jouissances, des prestations. Or le talisman et sa possession ont, quant à nous, très tôt, sans doute dès les sociétés les plus primitives, joué ce rôle d’objets également convoités par tous, et dont la possession conférait à leur détenteur un pouvoir qui devint aisément un pouvoir d’achat” — in Les origines de la notion de monnaie, Marcel Mauss (1914).
As contas de casca de ovo de avestruz, ou realizadas com pequenos búzios (cauri), pérolas, botões, vidro, etc., o gado bovino que se deslocava (e ainda desloca) às feiras como principal moeda de troca, o sal, o ouro e outros metais e ligas metálicas, desempenharam desde o início da humanidade (Homo sapiens sapiens) —em alguns casos até aos dias de hoje— a função de moedas-mercadorias. Mas se o gado, o sal e os metais podiam ser trocados pelo seu imediato valor de uso, dependendo o valor de troca destas moedas-mercadorias da respectiva origem e qualidades intrínsecas (nomeadamente genéticas e sanitárias), já no que respeita aos colares de contas a apreciação derivava e deriva necessariamente de uma dimensão sobretudo simbólica, reforçada por certos atributos tais como, a raridade, a originalidade, a estranheza, a cor e a forma — natural ou derivada de uma especial, qualificada e autorizada incisão humana, por sua vez rodeada de uma aura de mistério, magia e sedução.
“Schurtz remarque d’ailleurs très finement, après Kubary qui avait fait l’observation dans les Iles Palaos, que l’argent ne fut pas primitivement employé à l’acquisition des moyens de consommation, mais à l’acquisition de choses de luxe, et à celle de l’autorité sur les hommes. Le pouvoir d’achat de la monnaie primitive c’est avant tout, selon nous, le prestige que le talisman confère à celui qui le possède et qui s’en sert pour commander aux autres.” — idem.
Rai stones, as maiores moedas conhecidas, em uso na ilha de Yap, Micronésia, há mais de 500 anos.

Parece pois ter existido um sincretismo inicial onde a colecção de objectos decorativos, a téchnê, e a memória das trocas entre humanos confluíram para uma espécie de narrativa metafísica inaugural das relações entre tudo o que é percebido, sentido e vivido. Daí que as perfurações e os cortes, incisões e talhes (1) que acompanham os primeiros desenhos humanos —em conchas e perónios de babuínos, e antes e depois desta exteriorização, certamente, sobre o próprio corpo humano— pareçam ter servido ao mesmo tempo para consagrar rituais de dádiva e troca simbólica, para apreender o mistério imanente a uma súbita intensidade da actividade cognitiva relacional, acompanhada da emergência surpreendente de uma nova subjectividade concreta (estética), bem como para estabelecer a primeira pragmática da representação algorítmica da contabilidade do tempo, das trocas e das acções. Mas o que poderá ter sido decisivo neste transe evolutivo da humanidade, que do ponto de vista da teoria de arte, continua incompleta, é a aliança congénita entre religião (i.e. a política), conhecimento e representação, sendo a representação sobretudo um sistema de pontes técnico-simbólicas destinadas a iluminar os objectos da atenção selectiva, e a transfigurar depois o conhecimento crescente dos mesmos num regime evolutivo de representação a que chamamos linguagem: desenho, pintura, escrita, numerologia (unária, binária, digital-decimal, etc.)

Medieval Exchequer Tallies, ou Talhas de Fuste, Alpes suíços (2)
“Mais n’y a-t-il pas là un sentiment encore très vivace chez nous ? Et la vraie foi que nous nourrissons vis-à-vis de l’or et de toutes les valeurs qui découlent de son estimation, n’est-elle pas en grande partie la confiance que nous avons dans son pouvoir ? L’essence de la foi en la valeur de l’or ne réside-t-elle pas dans la croyance que nous pourrons obtenir, grâce à lui, de nos contemporains les prestations – en nature ou en services – que l’état de marché nous permettra d’exiger ?” — ibidem.
Jared Diamond identifica no seu livro Guns, Germs and Steel — The fates of Human Societies, uma mudança fundamental na evolução humana, ocorrida há uns 50 mil anos atrás, a que chamou Great Leap Forward, e que caracteriza deste modo:
“Human history at last took off around 50,000 years ago, at the time of what I have termed our Great Leap Forward. The earliest definite signs of that leap come from East African sites with standardized stone tools and the first preserved jewelry (ostrich-shell beads). Similar developments soon appear in the Near East and in southeastern Europe, then (some 40,000 years ago) in southwestern Europe, where abundant artifacts are associated with fully modern skeletons of people termed Cro-Magnons. Thereafter, the garbage preserved at archaeological sites rapidly becomes more and more interesting and leaves no doubts that we are dealing with biologically and behaviorally modern humans.”
Sem entrarmos na controvérsia das datas, que segundo alguns autores poderiam fazer recuar o Great Leap Forward do Homo sapiens sapiens, dos 50 mil anos considerados por Diamond, para 80 mil, 75 mil e 70 mil anos, se aceitarmos as datações da Caverna de Blombos para os primeiros utensílios de osso, contas de casca de ovo de avestruz e um fragmento de argila com uma banda de cruzes ali encontrados, parece consensual identificar como traços distintivos do Homem moderno a concomitância das seguintes características: produção de utensílios e ferramentas de caça e trabalho estandardizados (bifaces, pontas e agulhas de osso), mais precisos, polidos e diversificados que os do Homem antigo; colecção, manipulação e criação de fios de contas decorativos, eventualmente associados a rituais de troca simbólica (Potltach); invenção e inscrição de signos abstractos sobre superfícies externas, no que pode ser considerado o percurso inicial e porventura iniciático da representação (imagem, escrita e cálculo.)

Artefactos encontrados na Caverna de Blombos

A primeira conclusão inequívoca a deduzir dos achados é que o primeiro que encontramos, já no Homem antigo do Paleolítico Inferior (2,6 milhões a 100 mil anos atrás), antes de quaisquer representações ou transformações simbólicas, antes de quaisquer algoritmos, e antes da mais primitiva forma de dinheiro, é a invenção e o uso controlado do fogo, há 1,4 milhões de anos, em África, e rituais funerários no Paleolítico Médio, há cerca de 300 mil anos. Ou seja, a téchnê e a percepção transcendental da morte surgem já entre os hominídeos mais evoluídos. Só depois, muito depois —no seio dos Homo sapiens sapiens, nomeadamente daqueles que acabaram por ser os nossos directos antepassados— parecem ter surgido as primeiras tentativas de representação dos valores cognitivos guardados na memória tribal, e sua posterior reificação numa escala de valores.

Quem desde sempre lascou a pedra (dos primeiros bifaces e pontas de lança até aos diamantes lapidados à venda nas lojas de Antuérpia), e depois moldou a argila, furou e poliu as cascas de ovo de avestruz, os búzios e as pérolas, foram pois hominídeos artistas e artistas humanos. Este é certamente um grande enigma, na medida em que registamos uma evolução lógica nos artefactos ao longo dos tempos, mas não uma linha de continuidade entre proto-humanos e humanos modernos. Os hominídeos e grande parte dos Homo sapiens desapareceram para sempre. A raça humana actual, por sua vez, parece descender de uma única Homo sapiens recente (Homo sapiens sapiens): a Eva mitocondrial, nascida há 200 mil anos. Do outro lado desta descontinuidade genética encontra-se, pois, uma evolução razoavelmente lógica dos artefactos! Parece assim haver uma linha contínua do tempo que diz respeito à téchnê, ao mistério, à magia e ao fascínio estético, distinta da descontinuidade genética que separa o pré-humano do humano.

A maioria dos fundadores da téchnê não deixou, por conseguinte, descendência, mas a sua obra preenche mais de 95% da história da pedra lascada. Estes hominídeos evoluídos e Homo sapiens desaparecidos são possivelmente os mesmos que sabiam criar e manter o fogo, usando uma habilidade (e um secretismo?) que desde cedo os distinguiu de entre os membros da família alargada que começou por constituir as primeiras sociedades de pré-humanos. Como passou então a informação destes artistas pré-humanos para os descendentes coerentes da Eva mitocondrial? E, por outro lado, que diferença fundamental existe entre os artefactos dos hominídeos e Homo sapiens desaparecidos, e aqueles que começaram a ser produzidos em Blombos e no Lubombo?

A resposta talvez esteja na emergência dos processos de reificação das relações sociais e estabelecimento de hierarquias sociais, nomeadamente em resultado duma acumulação primitiva de valor! A avaliação, representação e fixação destas novas medições espaciais do tempo e da propriedade, enquanto trabalho e conhecimento acumulados, deve ter introduzido uma determinação inteiramente nova e revolucionária na praxis demiúrgica da téchnê. Talvez tenha começado por esta altura a diferenciação fundadora —e a tensão jamais resolvida—entre entre religião, conhecimento e arte. A religião fixa sobretudo o sentimento e o horror da perda, enquanto a téchnê (i.e. a arte) redime tal frustração através de uma reafirmação surpreendente e inesperada do próprio princípio criativo que a morte insiste em reduzir a nada. O conhecimento, em suma, aparece para devir o que tem sido desde então: uma pragmática do ilusório que avança lentamente por entre as sombras infinitas de uma caverna infinita.

Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto

NOTAS
  1. Um dos mais antigos testemunhos de representação simbólica (35 mil anos?) Primeira régua de cálculo, ou um talismã críptico-religioso e artístico? Descrição:
    “A small piece of the fibula of a baboon, marked with 29 clearly defined notches, may rank as the oldest mathematical artefact known. Discovered in the early seventies during an excavation of the Border Cave in the Lebombo Mountains between South Africa and Swaziland, the bone has been dated to approximately 35,000 B.C. In a description of the bone, Peter Beaumont, an archaeologist who has done extensive work on Border Cave, has noted that the 7.7 cm long bone resembles calendar sticks still in use today by Bushmen clans in Namibia.” – from The oldest mathematical artefact by Bogoshi, Naidoo, and Webb, in What’s the Oldest Mathematical Artifact?
    Cf. com outro objecto muito semelhante, conhecido por Ishango bone.
  2. Esta espécie de varões de medida, ou réguas de valor —tally stick/ split tally (EN), bâton de taille/ bâton de comptage/ bâton de taille partagé (FR), talha de fuste (PT)— serviram em Inglaterra, em França, em Portugal-Brasil, etc., desde a Idade Média até ao século 19 e mais tarde, como instrumentos na regulação de contratos entre pessoas analfabetas, ou entre o Estado e/ou empresas e pessoas que não sabiam ler, nem contar, substituindo-se às moedas convencionais, quando não abundavam, ou quando os contratos envolviam quantias grandes, ou implicavam diferimentos que exigiam formas de registo fiáveis para ambas as partes contratuais. Sobre o significado de talha de fuste:

    # talha de fuste = vara com mossas
    # pelas mossas de pau se mediam os impostos, as multas, as execuções e os alqueires de trigo
    # mossas de pau (modo de contar dos rústicos que não sabiam nem ler nem contar)
    # talho, talha, talhe (da carne, na madeira, no osso, etc.)
    # talho: mossa ou corte dado no pau para marcar a conta — in Diccionario da Lingua Portugueza. Por António de Morais Silva (natural do Rio de Janeiro), Lisboa 1831.

    Sobre o significado de talhe:
    s.m. Estatura e feição do corpo: mulher de talhe elevado.
    A feição de qualquer objeto.
    Modo de cortar uma roupa; corte: o talhe do terno.
    O mesmo que talho.

    Sobre o significado de talha:
    s.f. Ação de talhar, de cortar; entalhe, gravura.
    Porção de metal que se tira com o buril.
    Mão, cartada (no jogo da banca).
    Corda que se amarra à cana do leme para governar melhor nas tempestades.
    Aparelho constituído por um jogo de roldanas de diâmetros diferentes e destinado a levantar grandes pesos; moitão, cadernal.
    Obra de talha, obra de relevo, escultura em madeira ou marfim.

    Sobre o significado de talho:
    s.m. Ato ou efeito de talhar ou cortar; talhamento, talha.
    Corte produzido por fio ou gume: deu um talho no dedo.
    Modo de cortar ou talhar uma roupa; talhe: alfaiate de bom talho.
    Feitio, feição, talhe: letra de bom talho.
    Corte de ramos das árvores; desbaste, poda.
    Corte e divisão da carne para a venda.
    Cepo sobre o qual se retalha a carne.
    Açougue.

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